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Rosinante - ilustração de Gustave Doré https://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.0/ |
“Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é utopia, não é loucura, é
justiça”.
Sejam bem-vindos, caros leitores e caras leitoras. Conforme prometido na semana passada, hoje começamos nossa grande jornada pelos clássicos universais É com uma das falas mais lúcidas de um dos maiores símbolos da loucura da literatura universal que começo nossa primeira viagem (prometendo retornar a ela no momento oportuno). Apertem seus cintos, pois estamos nos aproximando da Espanha, mais precisamente da região de La Mancha, uma área natural e histórica localizada no centro-sul, abrangendo partes das províncias de Albacete, Ciudad Real, Cuenca e Toledo, conhecida por suas vastas planícies. O ano é 1605. Antes que você me pergunte o que fazemos aqui, tão distantes no tempo e no espaço, eu respondo: vim apresentá-lo a um dos mais conhecidos, senão o maior de todos, personagens da literatura universal: o fidalgo Dom Quixote de La Mancha. Antes de partirmos, vamos preparar a nossa “playlist” de viagem com a música “Sonho impossível” (seja na voz do saudoso Altemar Dutra ou da esplêndida Maria Bethânia) cujo original “The Impossible Dream (The Quest)" é uma canção popular composta para o musical da Broadway de 1965, O Homem de La Mancha, também aparecendo no filme homônimo de 1972, estrelado por Peter O'Toole.
Esse compulsivo leitor das novelas de cavalaria (sim, ler pode virar uma compulsão, mas não se preocupe com isso agora) gênero literário predominante em sua época, em especial na península Ibérica, nosso protagonista, cujo nome real era Alonso Quijano, após tantas e tantas leituras, acabou mergulhando de cabeça no universo fictício do mundo medieval e de lá não conseguiu retornar jamais de tal forma que se batizou com seu novo nome de cavaleiro errante e passou a uma vida de aventuras, aquelas que tantas vezes lera nas novelas que abarrotavam as estantes de sua casa.
O cavalo pangaré transforma-se no corcel Rocinante, uma bacia na cabeça torna-se o elmo de Mambrino e a camponesa da vizinhança vira a bela e nobre donzela Dulcineia. Tomado pelos elementos de idealização que retornariam mais tarde, no Romantismo, que vai adotar o cavaleiro medieval como herói, nosso paladino singular parte para a batalha. Acredite em mim, estimado leitor, nem uma centena de artigos nesta coluna seriam suficientes para cobrir as inúmeras proezas e aventuras vividas por ele, mas também não é esse o nosso objetivo. Até porque, para ser bem sincero, nada (guarde bem essa primeira lição literária!), nada pode substituir a leitura integral de um clássico.
O maior dos encantos dessa obra é, sem dúvida, a observação de um homem que trocou a realidade pela fantasia, o cotidiano pelo sonho. Sempre acordado, ele recusa-se a despertar para a realidade, colocando-se, o tempo todo, em maus lençóis pelos desvarios aos quais chama de aventuras. Agora, sim, retomando à nossa frase inicial, o protagonista enxerga sua missão de cavaleiro como a de qualquer outro homem comum neste mundo: a defesa da justiça. Justamente daí vem a simpatia por ele de tantos leitores como eu, que passam a desejar seu sucesso e torcer por um possível final feliz. Nosso cavaleiro busca a glória inacessível? Sim, mas por meio da manutenção de princípios mais do que sólidos e nobres. Isso nos põe a pensar: seria mesmo ele totalmente louco?
Uma das mágicas feitas pela literatura pode ser encontrada nesse livro, o qual o autor pretendeu usar como crítica ao gênero de cavalaria, que predominava em sua época como, segundo o mesmo, uma ficção exagerada que deturpava ao extremo a consciência da realidade. Acontece que (agora vem a segunda lição literária de hoje) nenhum autor tem controle sobre sua obra a partir do momento que ela sai de suas mãos e chega até o leitor. Nosso bravo Dom Quixote abriu um leque de releituras e interpretações a respeito da visão que se tem da realidade. Ao redor dos milhares de análises que já se fizeram, notamos em destaque palavras como loucura, alienação, utopia, idealismo e muitas outras.
Ao escutar um trecho da tradução da faixa original de nossa “playlist” de hoje: “Sonhar o sonho impossível,/ Sofrer a angústia implacável,/ Pisar onde os bravos não ousam,/ Reparar o mal irreparável,/ Amar um amor casto à distância,/ Enfrentar o inimigo invencível,/ Tentar quando as forças se esvaem,/ Alcançar a estrela inatingível:/ Essa é a minha busca”, fica claro o idealismo com o qual nosso guerreiro se reveste tal qual uma armadura impenetrável. Mesmo perdendo o senso da realidade, ele jamais abandona o ímpeto de lutar, lutar por algo que valha a pena, lutar por algo que faça sentido. Não se trata de um sonho egoísta ou mesquinho, uma besteira ou um mero capricho, mas um sonho que abarca um mundo todo. Um mundo que todos nós gostaríamos que se concretizasse.
Dom Quixote faz o perfil do herói solitário, como tantos o são (ou será que solitária é a sua causa?), mas, para sua penosa diligência conta com a ajuda de seu escudeiro Sancho Pança, uma pequena parcela de juízo ou senso encarnado em um homem simples e que vê tudo de uma maneira muito pragmática ou prática. É como uma consciência que o tenta fazer colocar os pés no chão novamente e fazê-lo enxergar o quanto pode perder com essa sua louca busca (e aqui não há como não se lembrar do grilo falante que acompanha o personagem Pinóquio, do italiano Carlo Collodi, em suas aventuras). São dois opostos que se completam nessa jornada, mas que se resumem a dois extremos: enquanto esse não enxerga a realidade, aquele não se permite sonhar jamais.
A mais emblemática passagem do livro se dá quando o paladino da justiça confunde os moinhos de vento, tão comuns em sua região, com verdadeiros gigantes, e parte em ataque impetuoso, mesmo sob as advertências vazias de seu fiel escudeiro; episódio eternizado em telas de célebres pintores como Salvador Dali e Pablo Picasso e, mesmo léguas e eras distantes, na letra da música homônima do grupo Engenheiros do Hawaii no trecho: “Por amor às causas perdidas/ Tudo bem, até pode ser/ Que os dragões sejam moinhos de vento” (também vale a pena ouvir). Aproveitando o rock nacional, por que não lembrar a bela canção “O poeta está vivo”, composta por Frejat em homenagem a Cazuza com o trecho “O poeta está vivo/ Com seus moinhos de vento/ A impulsionar/ A grande roda da história” que faz uma bela comparação do poeta, com seus sonhos e desafios diante da crua realidade, com o nosso eterno cavaleiro que, aliás, deu origem ao adjetivo “quixotesco”, que caracteriza a pessoa utópica e sonhadora, inclusive deu vida a tantos fantásticos personagens, entre eles, nosso Policarpo Quaresma, da obra de Lima Barreto, que muito merece uma leitura.
Nossa viagem de hoje termina por aqui, com algumas reflexões que podem durar até a nossa próxima escala: cá entre nós, amigo leitor, quem nunca teve seus lampejos ou seus surtos quixotescos? Quem de nós não teve um sonho classificado como impossível ou simplesmente absurdo por outras pessoas? Que nunca desejou mudar a realidade em que vive ou até mesmo querer fechar os olhos para o mundo que nos cerca e sonhar, mesmo que por uma fração de segundos, com outra realidade? Quantos já não foram chamados de tolos ou loucos por almejar algo considerado impossível pela maioria? Despeço-me desejando, de coração, que nenhum de nós deixe apagar aquela centelha de Dom Quixote que resiste bravamente dentro de cada um. Não estou pedindo que se ignore a nua e crua realidade, mas, que nenhum de nós abra mão do direito de sonhar com um mundo mais justo e mais humano. Como diz um trecho de mais uma canção do musical “O homem de la Mancha”: “Pois quem não se aventura/ Com fé e ternura/ Não pode o mundo mudar”. Caro leitor, que ninguém perca a ternura, jamais. Salve, Dom Quixote! Padroeiro dos loucos e dos sonhadores.
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. Dom Quixote. Rio de Janeiro: Antofágica, 2024.
Parabéns! Excelente!
ResponderExcluirBem escrito, como merece um clássico homenageado. Bem ilustrado, como merece um leitor apaixonado.
ResponderExcluirQue maravilha, meu nobre amigo. Gostei muito do espaço literário aqui e voltarei sempre, com certeza. Amo Dom Quixote e gostei muito da resenha. Abraços poéticos!!!
ResponderExcluirExcelence! Não vou me render em muitos elogios que é pra não faltar palavras nas próximas viagens, mas confesso que a vontade é grande.
ResponderExcluirMuito bom! Parabéns!
ResponderExcluirBravo!!!!!!!
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