Caros vestibulandos e leitores, hoje seguimos com nossa breve análise
dos livros para o vestibular da FUVEST. Agora é a vez do livro “Memórias de
Martha”, da escritora Júlia Lopes de Almeida, obra originalmente publicada em
capítulos, como os folhetins românticos entre os anos de 1888 e 1889. Ao longo
do tempo, foram lançadas três edições que possuem algumas pequenas diferenças.
O romance, lançado em 1888, sempre foi sinônimo de dificuldade para ser obtido,
apesar de sua importância histórica como o primeiro enredo sobre um cortiço.
Agora, como já é de praxe, vou
apresentar em poucas linhas sua autora: Júlia Valentim da Silveira Lopes de
Almeida foi escritora, cronista e teatróloga. Escreveu literatura infantil,
romances, crônicas, peças de teatro e, desde o início, suas obras já
demonstravam uma mulher à frente de seu tempo. Júlia fazia parte do grupo que
planejou a criação da Academia Brasileira de Letras, contudo ficou de fora da
primeira lista de “imortais” pelo simples fato de não ser homem. Em seu lugar
foi empossado o marido, o escritor português Filinto de Almeida.
Mas, antes que alguém pergunte, vamos para a história: tudo começa por
uma mulher já adulta, que começa a contar sua vida desde quando criança.
Martha, a protagonista, perde seu pai, provedor da família. Com isso, a mãe, que
também se chama Martha, não vê outra solução a não ser trabalhar como
engomadeira para poder sustentar as duas. Elas, que tinham uma vida até
razoável, com certo conforto, agora, com a pouca renda originada do serviço da
mãe, veem-se obrigadas a morar em um cortiço em São Cristóvão, lembrando que os
cortiços eram a grande sensação de moradia popular na época. A filha sente
tremenda repulsa pelo lugar: úmido, constante mau cheiro devido a se localizar
próximo a um matadouro, sempre sobrevoado por diversos urubus. Como se não
bastasse, o quarto em que vivem é descrito como estreito, escuro e abafado,
como de deveriam ser todos os outros, pois os cortiços eram quase que a última
alternativa em questões de moradia devido a precárias estruturas e a
localizações desfavoráveis.
A mãe, agora também costureira, trabalha arduamente para poder prover o
sustento do lar e procura propiciar à filha a oportunidade de estudar, o que acaba
se tornando o grande objetivo de Martha. Tudo o que ela mais quer é sair do
cortiço, pois aquele ambiente cada vez mais a faz sentir a humilhação de ser
pobre. Isso fica mais evidente ainda quando ela começa a comparar sua vida com
as demais meninas que frequentam a escola com ela. Tal sonho começa a se tornar
possível desde o momento em que Martha entra na escola. Lá ela conhece D.
Aninha, uma professora que passa a incentivá-la para que estude e para que
tente a carreira no magistério. Depois de algum tempo, Martha se torna adjunta
e passa a receber um salário. Sua situação começa enfim a mudar porque agora
ela já consegue alugar uma pequena casa e, finalmente, deixar de uma vez por
todas o cortiço, o que pode ser encarado como uma grande vitória em sua vida.
Entretanto, nada disso vem fácil assim para ela, tudo é fruto de um
esforço absurdo, pois a vida começa a mostrar as barreiras que toda mulher
enfrenta em sua busca por independência. Ela chega a ser diagnosticada como histérica
e o ouve do médico que deveria procurar por casamento, como se esse fosse o seu
problema: não ter um homem ao seu lado. Procurando ajudar a moça para aliviar a
tensão e a pressão social, D. Aninha a convida para passar as férias com ela em
um lugar distante dali. Nesse local, ela é apresentada para Luís, primo de sua
professora. Ela acaba se apaixonando por ele, todavia eles são muito
diferentes, pois enquanto ele parece ser um rapaz cheio de vida, alegre e
extrovertido, ela anda sempre triste, séria demais e muito tímida. Ao não ser
correspondida, Martha acredita que a causa seja por ela ser feia e pobre. Aqui
notamos que uma espécie de complexo de inferioridade a persegue. A situação leva a moça a questionar se
realmente o amor verdadeiro existe.
Enquanto estava de férias, ela escrevia frequentemente cartas para a sua
mãe. Nelas, demonstrava toda a sua paixão por Luís. A mãe passou a mostrar as cartas
para um cliente chamado Miranda, que há um tempo estava viúvo e desde então vivia
sozinho com os filhos. Após tantas leituras e comentários da mãe, Miranda acaba
se apaixonando por Martha por causa de seus escritos, pois nunca tivera
qualquer contato com ela. Ela finalmente participa de um concurso para
professora e acaba sendo aprovada. Miranda então pede sua mão em casamento. Num
primeiro instante, ela não aceita porque não sente nada por ele.
Martha, agora mais do que nunca, tem a possibilidade de ser
independente, porque já possuía um emprego e, portanto, não precisava se casar
por conveniência. Porém a mãe insiste com ela sobre a frágil reputação das
mulheres que permanecem solteiras depois de certa idade. Depois de pensar e
ouvir a mãe, ela decide aceitar, mas não deixa de lembrar seus sonhos e
lamentar seu destino. Depois de oito
dias do casamento, a mãe vem a falecer. Ao que tudo indica, estava adiando o
fim até que tivesse certeza que sua filha não ficaria desamparada e que, enfim,
sua missão fora cumprida. Agora podia descansar em paz após essa luta de tantos
anos. Martha termina sua narrativa dando-se por realizada com o espaço que
conquistou.
Quanto aos elementos, o foco narrativo conserva-se na primeira pessoa,
com a própria Martha sendo a narradora e protagonista. O leitor acompanha suas
lembranças, iniciando pela infância, passando pela juventude difícil e chegando
enfim à vida adulta. Tal história é contada por meio de suas percepções e
reflexões sobre o ambiente à sua volta, permitindo ao leitor ver de perto as
experiências e emoções de Martha. Ao explorar a subjetividade da personagem, o
leitor pode ter uma visão íntima da realidade social da época, o que vem a
reforçar a crítica social, pois, por meio de suas experiências, tem-se acesso às
dificuldades enfrentadas pelas mulheres de sua época. O retrato dela é o
retrato da mulher no final do século XIX.
O tempo da narrativa é marcado pela alternância: o momento presente em
que a protagonista relembra sua história e a infância e juventude, permitindo que
se acompanhem suas recordações, mesclando suas impressões do passado com
reflexões de sua trajetória, pois se trata de uma mulher madura que interpreta os
eventos do passado com a experiência do presente, podendo compreender as marcas
que o tempo deixou. O espaço central da narrativa é o cortiço no Rio de
Janeiro, onde Martha e sua mãe vivem em condições precárias. Outros espaços são
citados, porém com menor importância, na maioria das vezes, servindo como
contraste com a realidade do cortiço, símbolo da miséria e desigualdade,
revelando a crítica social da obra.
A obra apresenta-se por meio de diversas transgressões: autoria de uma
mulher, a não aceitação do casamento por Martha, o seu atributo intelectual e
não físico como era comum nas protagonistas, demonstrando a profundidade tão
ignorada das mulheres. Destaque para os estudos e o trabalho como desejos de
uma mulher e trilhas para sua satisfação, valorizando
a posição de
independência e enfatizando a capacidade da mulher para vencer desafios. Além
disso, há um certo pioneirismo em focar a educação como uma forma de ascensão
social. Martha busca o casamento como
ato de amor e não como garantia econômica. Mas seu caminho não será nada fácil
diante das hostilidades que recebe de uma sociedade patriarcal.
Na obra, podem-se observar elementos do Realismo, como descrições
detalhadas de cenas e espaços do cotidiano, também elementos do Naturalismo como
a questão do Determinismo que, acaba sendo refutado, em parte, pelo exemplo da
protagonista. Apesar de acabar cedendo a uma vontade da mãe e acabar se casando
em nome da estabilidade, da moral e dos bons costumes, Martha termina o romance
sentindo-se uma vencedora.
Vou ficando por aqui, caro
vestibulando. Espero ter sido útil. Até a próxima obra.
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