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Crédito:Christoffer Wilhelm Eckersberg "Ulysses revenge on Penelope's suitors" |
“Já não te
passarei a contar de modo contínuo como será a direção do teu caminho, mas tu
próprio terás de decidir”.
Bem-vindo,
caro leitor! Bem-vinda, cara leitora! Cá estamos nós mais uma vez, pois hoje é
dia de viajar. Apertem os cintos e vamos finalmente deixar a bela Florença por
onde tivemos acesso às regiões infernais. Aliás, ainda sinto o cheiro de
enxofre impregnado nas minhas roupas e trago guardados na memória os horrores
que vi. Então vamos, finalmente, mudar de ambiente. Prepare-se para viver uma
das maiores aventuras já vistas na face da Terra, é isso mesmo! Estamos nos
dirigindo às Ilhas Jônicas, em pleno arquipélago grego. Antes que me pergunte a
época, século IX a. C. (talvez o tempo mais distante ao qual chegaremos sob as
asas da literatura). Antes de qualquer coisa, vamos acessar a “playlist” da
nossa viagem: a trilha sonora do filme “2001: uma odisseia no espaço” (1968) de
direção do brilhante Stanley Kubrick – um marco cinematográfico da ficção
científica – que reúne obras clássicas dos compositores Richard Strauss, Gyorgy
Ligeti e Johann Strauss II.
Pouco tempo
depois, chegamos à ilha de Ítaca onde encontraremos o rei Odysseus (daí o nome
do livro “Odisseia”: jornada de Odysseus) o qual foi obrigado a lutar em uma
guerra que não via como sua, portanto, com a qual não concordava; mas a cujo
chamado atendeu por obediência ao maior rei grego (Menelau), partindo e
deixando à sua espera a esposa Penélope e o filhinho Telêmaco (com apenas um
mês de vida). Fico aqui pensando quantos homens nesse nosso mundo foram
obrigados a seguirem a outros para lutarem suas guerras por eles em nome de
valores como honra e glória e quantos deles jamais retornaram para o seio
familiar. Com nosso herói não foi tão diferente assim.
Sinto-me na
obrigação de prestar contas aos meus leitores mais exigentes, ávidos por
informações: que esse livro é, na verdade, a sequência (e por que não a consequência?)
de outro: “Ilíada”, ambos atribuídos ao mesmo autor (Homero) sobre o qual
pairam as mais variadas dúvidas, inclusive data e legitimidade da própria
autoria, inclusive se essa construção não foi coletiva. Este primeiro versa
sobre a guerra de Tróia como bem sintetizada nos versos do repentista Otacílio
Batista, musicados por Zé Ramalho: “Numa luta de gregos e troianos/ Por Helena,
a mulher de Menelau/ Conta a história que um cavalo de pau/ Terminava uma
guerra de dez anos...”. Isso mesmo, meu caro leitor, este conflito foi por
causa de uma mulher (não sejamos inocentes que ela tenha sido causa e motivo
exclusivo), porém não podemos perder o foco.
Longos e
penosos dez anos durou tal guerra e foi terminada graças à astúcia de um dos
generais gregos: Odisseu, o qual criou a estratégia do famoso cavalo de Tróia,
responsável pela expressão até hoje usada pelo mundo: “presente de grego”.
Vamos lembrar que esse mesmo cavalo recebe referência naqueles softwares com
falsa aparência que carregam dentro de si vírus com os quais os hackers roubam
dados de usuários, sem falar no best-seller “Operação Cavalo de Tróia” de J. J.
Benitez, que tanto furor causou na década de 80. Após o término dessa guerra,
nosso herói retornará, enfim, para seu reino e sua família. Perdoe-me o leitor
que me acompanha e pode ter com considerado essa introdução um tanto quanto
fatídica, porém necessária – assim penso. Odisseia trata tão somente do retorno
de Odisseu da guerra.
Os
heróis gregos nunca esconderam sua falibilidade humana, assim como seus
próprios deuses. Não seria diferente com este. Cabe aqui lembrar que Odisseu é
mais conhecido por nós como Ulisses. Isso porque os romanos tiveram a audácia
de plagiar toda a mitologia grega (e este “toda” não se trata de uma hipérbole)
mudando apenas seus nomes, dando a eles uma roupagem latina. Ulisses, após a
guerra, tomado de soberba, bradou de peito aberto aos quatro ventos: “Ninguém
pode derrotar o grande Ulisses!”. Essa frase dará início ao conflito do enredo:
uma viagem cheia de aventuras extraordinárias, sendo esse, hoje o significado
da palavra odisseia, como no título do filme cuja trilha sonora é o tema de
nossa viagem.
Como punição à
sua insolência de ignorar a ajuda e a importância dos deuses em sua vitória, o
general será castigado pelo deus Poseidon (Netuno) a vagar pelos mares sem
jamais encontrar o caminho de casa, como se diz na música “A ferro e fogo” do
grupo Camisa de Vênus: “Pra algum ponto perdido em algum canto do mundo / Desafiar
o oceano e a ira de Netuno”. Ele e sua tripulação serão expostos aos mais
variados tormentos e perigos ao longo da viagem. Há uma farta lista de deuses e
de criaturas mitológicas encontradas no percurso, sempre em forma de mortal
armadilha, entre eles o ciclope Polifemo (filho de Netuno) cegado por Ulisses,
a feiticeira Circe, dona da frase que abre nosso artigo, que transformou boa
parte de sua tripulação em animais, a passagem pelas sereias que seduziam os
homens com seus cantos para depois matá-los, o aprisionamento de Éolo, deus do
vento, entre tantas outras façanhas realizadas. Aliás, existe uma lenda
portuguesa de que o herói tenha fundado Lisboa e que, por isso, o nome da
cidade origina-se do nome dele, no original “Ulissesboa”.
Em meio a
tantos eventos extraordinários, convido o nobre leitor a colocar os pés de
volta ao chão, pois, após essa jornada mitológica, retorno ao compromisso desse
nosso espaço: provar que a literatura não é uma fuga, mas um mergulho ao íntimo
do homem. Nosso herói Ulisses, ao longo de sua viagem, a qual esqueci de
mencionar ao leitor, durou nada menos que dez anos os quais, somados aos dez da
guerra, dão um total de vinte. Não acompanhou os primeiros passos do filho, não
o ouviu balbuciar sua primeira palavra, não o crescer, enfim, perdeu tudo o que
um pai gostaria de acompanhar. Ao retornar ao seu lar, Telêmaco já havia se tornado
um homem de vinte anos de idade. Importante destacar que Ulisses não era um
bravo e hábil guerreiro como Aquiles (protagonista de Ilíada) nem era belo como
Narciso ou possuía algum desses atributos mais admiráveis pelos mortais. Mas,
então, o leitor pode me perguntar: O que ele tem de bom?
Nosso herói
carrega consigo a vontade de alcançar o seu propósito. Para tanto, ele não
desiste perante a nenhuma das diversidades enfrentadas em sua volta (que não
foram poucas), tendo em vista o seu objetivo único: reencontrar mulher e filho,
o que me lembra outro trecho da canção citada acima: “Somos moldados / A ferro
e fogo”. Aliás, essa música tem tudo a ver com esse livro, vale a pena ouvir. Mas,
voltando ao nosso protagonista: por meio dos mais diversos recursos de que
dispõe a mente humana, como a inteligência, a perspicácia, a persuasão, entre
tantos outros, nosso herói prossegue resoluto, diferentemente dos demais heróis
gregos, que se valem da força bruta e da coragem em combate. Contrariando a
máxima revelada na tragédia grega de Édipo Rei: “Nenhum homem foge ao seu
destino”, nosso herói deixa claro o livre arbítrio que todo homem possui.
Escolha essa exercida quando a deusa Calipso, que o aprisionou por sete anos em
sua ilha, ofereceu-lhe a dádiva da imortalidade na companhia dela. Qual foi a
resposta imediata do herói? Nada nesta vida poderia ser mais valioso que poder
envelhecer e morrer ao lado de sua família.
Com essa última
citação, amigo leitor, vai chegando ao fim a nossa viagem desse dia, e, se toda
viagem deixa ao viajante alguma lembrança como um sinal de presente, que
permaneça nos corações e mentes de todos o desejo de que cada um seja o único e
exclusivo senhor de seu próprio destino, contudo, para que isso aconteça, é
preciso lembrar que o que nos afasta ou nos aproxima dele são tão somente as
nossas escolhas. Que assim como o obstinado Odisseu, possamos enfrentar as
tempestades e as ondas do mar bravio rumo ao nosso porto seguro, onde quer que
ele se encontre. Até a próxima viagem!
HOMERO. Odisseia. Florianópolis: Penguin, 2018.
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