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terça-feira, 30 de setembro de 2025

CAMINHO DE PEDRAS (LISTA FUVEST)


 

Caros vestibulandos e leitores, hoje é dia de mais uma análise de um livro da lista da FUVEST. Agora é a vez da obra “Caminhos de pedras”, o terceiro romance da escritora Rachel de Queiroz. O livro foi publicado em 1937, produzido algum tempo antes, quando Rachel foi presa como comunista no Corpo de Bombeiros de Fortaleza, ficando em regime incomunicável, portanto escrito na cadeia. Este livro é considerado o mais engajado de toda a sua carreira. 

Como não poderia deixar de dizer algumas palavras sobre a escritora que começou sua carreira jornalística escrevendo para o jornal quando tinha apenas 17 anos. Aos 19 anos, começou a escrever o romance “O Quinze”. Com sua publicação, em 1930, tornou-se nacionalmente conhecida. Foi presa pelo governo, acusada de ser comunista e permaneceu assim por dois anos. Além do prêmio da Fundação Graça Aranha, também ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura Infantil e o Prêmio Camões, a maior honraria dada a escritores de língua portuguesa.

Agora, vamos ao enredo: tudo começa com a chegada de Roberto a Fortaleza, ele é um jornalista encarregado de organizar os simpatizantes do socialismo. É apresentado aos demais membros por Luís, um dos líderes. Durante o discurso de Luís e a reação de alguns membros, percebe-se a divisão entre os operários e os intelectuais. Na visão dos trabalhadores, Roberto não sente na pele a exploração, portanto, não entenderia o sacrifício deles. Essa é uma pauta frequente nos encontros

Nesses encontros estão Angelita e Noemi, cujos maridos já foram participantes, mas desistiram da luta e se afastaram de vez, pois foram presos e perderam seus empregos, ou seja, pagaram um preço bem alto por seus sonhos. Elas resolvem ser militantes, assumem os riscos e se desentendem com os maridos, que as ensinaram a lutar e agora desistiram. O conflito entre Angelita e Assis vai se agravando cada vez mais porque ele enxerga para ela o mesmo destino que foi o dele. Enquanto isso, Noemi deseja ir além: reflete sobre a independência da mulher. Ela, cansada de viver uma vida enfadonha, em um trabalho que não gosta, em um casamento em que o amor acabou, deseja respirar novos ares. 

Logo, ela percebe que toda mulher tem uma luta a mais: os obstáculos criados por uma sociedade patriarcal. Em meio a isso tudo, ela conhece Roberto, apaixonando-se, primeiro por suas ideias, depois por seus sentimentos. Durante as reuniões, eles se aproximam cada vez mais e começam a ter um caso. Aos poucos, Noemi vai se despedindo da sua vida antiga e começando a construir uma nova, mas ainda é afetada pelo remorso devido a sua traição, por isso, depois de um tempo, pede a separação. Seu marido João Jacques se convence que não existe mais amor entre eles e vai embora de casa para deixar o caminho livre para Roberto. Agora, marcada como uma mulher divorciada, Noemi perde o seu emprego e, para agravar sua situação, seu filho, “Guri”, morre repentinamente por uma doença misteriosa. 

Apesar de tantos reveses, ela continua com Roberto em sua militância e, em um ato arriscado de panfletagem, os dois acabam presos, mas ela é liberada por estar grávida e termina o romance subindo, sozinha, uma ladeira de pedras, tropeça e se dá conta que terá um longo e árduo caminho pela frente. 

Quanto aos elementos, o foco narrativo é em terceira pessoa onisciente, com um narrador externo que tudo sabe. Essa forma dá acesso total ao leitor sobre os acontecimentos. O espaço, um tanto quanto restrito, limita-se ao redor da praça de Fortaleza, lugar propício às manifestações populares e manifestações. Nas imediações ocorrem os encontros sempre na clandestinidade. Nessa obra, a passagem do tempo é cronológica e não nos traz grandes mudanças, mas, quanto à sua marcação histórica, destaca-se o período da Era Vargas, momento de perseguição aos comunistas e simpatizantes. 

Sobre as temáticas presentes, a obra contempla uma sociedade em transição, na qual as mulheres começam a refletir sobre suas posições e papeis, representadas por Noemi, que decide atender seus desejos, mesmo às custas dos julgamentos da sociedade que enxerga a mulher apenas como mãe, esposa e dona de casa. Ela resolve enfrentar a tudo e a todos por sua felicidade. Caminho de Pedras é considerado um dos romances mais engajados de Rachel de Queiroz. A obra é marcada pelo distanciamento da autora do comunismo, refletindo críticas ao movimento. Mais uma vez, a autora nos revela uma mulher forte, protagonista, em sua luta por liberdade e um lugar ao sol. 

Paralela a esta luta, existe a luta de classes que segue adiante e que, apesar de pregar a igualdade, os homens ainda não tratam as mulheres como pares. Além disso, pode-se observar na obra um movimento todo dividido em duas classes: os operários e os intelectuais, mostrando uma autora que começa a se afastar da ideologia por causa das desilusões que vai sofrendo. 

A narrativa é marcada por um tom introspectivo mesclado a críticas sociais. Por meio de uma linguagem direta e clara, o leitor é convidado à reflexão. Nota-se ainda sua habilidade na construção das personagens femininas, acompanhada de um tom emocional intenso.  O título é a completa e precisa metáfora do caminho que Noemi decide traçar em direção à sua liberdade total. Vê-se uma mulher que ficou sem nada, mas continua a jornada sem perder as esperanças. 

QUEIROZ, Rachel de. Caminho de pedras. Rio de Janeiro: José Olympio, 2025.


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

O VERDADEIRO HERÓI CONSTRÓI O PRÓPRIO DESTINO

Crédito:Christoffer Wilhelm Eckersberg
"Ulysses revenge on Penelope's suitors"

“Já não te passarei a contar de modo contínuo como será a direção do teu caminho, mas tu próprio terás de decidir”.

Bem-vindo, caro leitor! Bem-vinda, cara leitora! Cá estamos nós mais uma vez, pois hoje é dia de viajar. Apertem os cintos e vamos finalmente deixar a bela Florença por onde tivemos acesso às regiões infernais. Aliás, ainda sinto o cheiro de enxofre impregnado nas minhas roupas e trago guardados na memória os horrores que vi. Então vamos, finalmente, mudar de ambiente. Prepare-se para viver uma das maiores aventuras já vistas na face da Terra, é isso mesmo! Estamos nos dirigindo às Ilhas Jônicas, em pleno arquipélago grego. Antes que me pergunte a época, século IX a. C. (talvez o tempo mais distante ao qual chegaremos sob as asas da literatura). Antes de qualquer coisa, vamos acessar a “playlist” da nossa viagem: a trilha sonora do filme “2001: uma odisseia no espaço” (1968) de direção do brilhante Stanley Kubrick – um marco cinematográfico da ficção científica – que reúne obras clássicas dos compositores Richard Strauss, Gyorgy Ligeti e Johann Strauss II.

Pouco tempo depois, chegamos à ilha de Ítaca onde encontraremos o rei Odysseus (daí o nome do livro “Odisseia”: jornada de Odysseus) o qual foi obrigado a lutar em uma guerra que não via como sua, portanto, com a qual não concordava; mas a cujo chamado atendeu por obediência ao maior rei grego (Menelau), partindo e deixando à sua espera a esposa Penélope e o filhinho Telêmaco (com apenas um mês de vida). Fico aqui pensando quantos homens nesse nosso mundo foram obrigados a seguirem a outros para lutarem suas guerras por eles em nome de valores como honra e glória e quantos deles jamais retornaram para o seio familiar. Com nosso herói não foi tão diferente assim.

Sinto-me na obrigação de prestar contas aos meus leitores mais exigentes, ávidos por informações: que esse livro é, na verdade, a sequência (e por que não a consequência?) de outro: “Ilíada”, ambos atribuídos ao mesmo autor (Homero) sobre o qual pairam as mais variadas dúvidas, inclusive data e legitimidade da própria autoria, inclusive se essa construção não foi coletiva. Este primeiro versa sobre a guerra de Tróia como bem sintetizada nos versos do repentista Otacílio Batista, musicados por Zé Ramalho: “Numa luta de gregos e troianos/ Por Helena, a mulher de Menelau/ Conta a história que um cavalo de pau/ Terminava uma guerra de dez anos...”. Isso mesmo, meu caro leitor, este conflito foi por causa de uma mulher (não sejamos inocentes que ela tenha sido causa e motivo exclusivo), porém não podemos perder o foco.

Longos e penosos dez anos durou tal guerra e foi terminada graças à astúcia de um dos generais gregos: Odisseu, o qual criou a estratégia do famoso cavalo de Tróia, responsável pela expressão até hoje usada pelo mundo: “presente de grego”. Vamos lembrar que esse mesmo cavalo recebe referência naqueles softwares com falsa aparência que carregam dentro de si vírus com os quais os hackers roubam dados de usuários, sem falar no best-seller “Operação Cavalo de Tróia” de J. J. Benitez, que tanto furor causou na década de 80. Após o término dessa guerra, nosso herói retornará, enfim, para seu reino e sua família. Perdoe-me o leitor que me acompanha e pode ter com considerado essa introdução um tanto quanto fatídica, porém necessária – assim penso. Odisseia trata tão somente do retorno de Odisseu da guerra.

   Os heróis gregos nunca esconderam sua falibilidade humana, assim como seus próprios deuses. Não seria diferente com este. Cabe aqui lembrar que Odisseu é mais conhecido por nós como Ulisses. Isso porque os romanos tiveram a audácia de plagiar toda a mitologia grega (e este “toda” não se trata de uma hipérbole) mudando apenas seus nomes, dando a eles uma roupagem latina. Ulisses, após a guerra, tomado de soberba, bradou de peito aberto aos quatro ventos: “Ninguém pode derrotar o grande Ulisses!”. Essa frase dará início ao conflito do enredo: uma viagem cheia de aventuras extraordinárias, sendo esse, hoje o significado da palavra odisseia, como no título do filme cuja trilha sonora é o tema de nossa viagem.

Como punição à sua insolência de ignorar a ajuda e a importância dos deuses em sua vitória, o general será castigado pelo deus Poseidon (Netuno) a vagar pelos mares sem jamais encontrar o caminho de casa, como se diz na música “A ferro e fogo” do grupo Camisa de Vênus: “Pra algum ponto perdido em algum canto do mundo / Desafiar o oceano e a ira de Netuno”. Ele e sua tripulação serão expostos aos mais variados tormentos e perigos ao longo da viagem. Há uma farta lista de deuses e de criaturas mitológicas encontradas no percurso, sempre em forma de mortal armadilha, entre eles o ciclope Polifemo (filho de Netuno) cegado por Ulisses, a feiticeira Circe, dona da frase que abre nosso artigo, que transformou boa parte de sua tripulação em animais, a passagem pelas sereias que seduziam os homens com seus cantos para depois matá-los, o aprisionamento de Éolo, deus do vento, entre tantas outras façanhas realizadas. Aliás, existe uma lenda portuguesa de que o herói tenha fundado Lisboa e que, por isso, o nome da cidade origina-se do nome dele, no original “Ulissesboa”.

Em meio a tantos eventos extraordinários, convido o nobre leitor a colocar os pés de volta ao chão, pois, após essa jornada mitológica, retorno ao compromisso desse nosso espaço: provar que a literatura não é uma fuga, mas um mergulho ao íntimo do homem. Nosso herói Ulisses, ao longo de sua viagem, a qual esqueci de mencionar ao leitor, durou nada menos que dez anos os quais, somados aos dez da guerra, dão um total de vinte. Não acompanhou os primeiros passos do filho, não o ouviu balbuciar sua primeira palavra, não o crescer, enfim, perdeu tudo o que um pai gostaria de acompanhar. Ao retornar ao seu lar, Telêmaco já havia se tornado um homem de vinte anos de idade. Importante destacar que Ulisses não era um bravo e hábil guerreiro como Aquiles (protagonista de Ilíada) nem era belo como Narciso ou possuía algum desses atributos mais admiráveis pelos mortais. Mas, então, o leitor pode me perguntar: O que ele tem de bom?

Nosso herói carrega consigo a vontade de alcançar o seu propósito. Para tanto, ele não desiste perante a nenhuma das diversidades enfrentadas em sua volta (que não foram poucas), tendo em vista o seu objetivo único: reencontrar mulher e filho, o que me lembra outro trecho da canção citada acima: “Somos moldados / A ferro e fogo”. Aliás, essa música tem tudo a ver com esse livro, vale a pena ouvir. Mas, voltando ao nosso protagonista: por meio dos mais diversos recursos de que dispõe a mente humana, como a inteligência, a perspicácia, a persuasão, entre tantos outros, nosso herói prossegue resoluto, diferentemente dos demais heróis gregos, que se valem da força bruta e da coragem em combate. Contrariando a máxima revelada na tragédia grega de Édipo Rei: “Nenhum homem foge ao seu destino”, nosso herói deixa claro o livre arbítrio que todo homem possui. Escolha essa exercida quando a deusa Calipso, que o aprisionou por sete anos em sua ilha, ofereceu-lhe a dádiva da imortalidade na companhia dela. Qual foi a resposta imediata do herói? Nada nesta vida poderia ser mais valioso que poder envelhecer e morrer ao lado de sua família.

Com essa última citação, amigo leitor, vai chegando ao fim a nossa viagem desse dia, e, se toda viagem deixa ao viajante alguma lembrança como um sinal de presente, que permaneça nos corações e mentes de todos o desejo de que cada um seja o único e exclusivo senhor de seu próprio destino, contudo, para que isso aconteça, é preciso lembrar que o que nos afasta ou nos aproxima dele são tão somente as nossas escolhas. Que assim como o obstinado Odisseu, possamos enfrentar as tempestades e as ondas do mar bravio rumo ao nosso porto seguro, onde quer que ele se encontre. Até a próxima viagem!

HOMERO. Odisseia. Florianópolis: Penguin, 2018.        

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

O CEMITÉRIO (PET SEMATARY) - STEPHEN KING

Ana Lívia, 17 - estudante

 

“É bem melhor mergulhar no luto do que tentar resolver o problema".

Porque não falar da obra que deu a vida para um dos maiores clássicos dos filmes de terror dos anos 80/90 e, consequentemente, uma das maiores músicas da banda Ramones?

O Cemitério” é uma obra literária escrita pelo grande rei do terro: Stephen King. O autor norte americano é conhecido por escrever histórias aterrorizante as quais se tornaram um marco do terror em filmes dos anos 80 e 90. As mais famosas, títulos dos quais eu tenho certeza de que você já ouviu falar, são: "O iluminado"; "Carrie, a estranha" e "It, a coisa". Um dos filmes mais famosos, que inicialmente era um livro de King, é a obra "À espera de um milagre" estrelado por Tom Hanks e Michael Clarke Duncan.

A obra, de título original "Pet Sematary", aborda como aceitar o luto e encarar problemas pode ser mais fácil do que tentar qualquer outra alternativa. Quem nunca perdeu alguém para a morte e pensou: " Daria minha vida para trazer essa pessoa de volta comigo!", essa situação é o que acontece com o protagonista, Louis Creed: um médico da enfermaria de uma faculdade que começa o livro com uma vida nova: emprego novo, casa nova, cidade nova. Porém sua nova vida tem novas pessoas e novos lugares, o que também é significado de novos segredos. Ao perder o gato da filha por um atropelamento, Louis conhece um cemitério o qual possui a capacidade de dar a vida aos mortos. Mas como nem tudo é perfeito, Creed usa isso ao favor da sua loucura, adiando problemas para causar mais problemas ainda.

A obra é escrita de forma fluida e simples, sem muita das complicações que o escritor traz normalmente em suas obras. Minha experiência foi de que fiquei completamente mergulhada na obra devido ao total de riquezas de detalhes de lugares e pensamentos do personagem, é possível perceber o desenvolvimento da loucura durante a leitura. As cenas mais sangrentas trazem a sensação de tirar a casquinha de um machucado profundo, para os amantes de terror isso é o que dá a vida para a obra. Toda a experiência que passei com a história foi muito grande comparada com o desenvolvimento para com o final do próprio livro. É decepcionante, porém ler aquelas últimas páginas de pura decepção valeram a pena devido a todo conteúdo do livro.

Uma pequena dica: quem ama a série de filmes da história, recomendo ler o livro. A leitura traz um aprofundamento melhor ao desenvolvimento dos personagens e há detalhes marcantes que trazem total espírito à obra os quais não têm nas obras cinematográficas.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

CANÇÃO PARA NINAR MENINO GRANDE (LISTA FUVEST)


         Caros leitores e vestibulandos, vamos dar continuidade à análise dos livros da lista FUVEST. Agora é a vez da obra “Canção para ninar gente grande” da escritora Conceição Evaristo, publicado em 2018 e que ganhou nova edição em 2022 por escolha da autora, que fez questão de acrescentar algumas ideias que ela notou ausentes e necessárias em relação à edição original. 

Falando um pouco sobre a autora: Conceição é escritora, ficcionista e ensaísta. Possui doutorado em Literatura comparada e começou como escritora em 1990. De lá para cá, teve a maior parte de seus livros traduzidos para outros idiomas, colecionou diversas homenagens e, entre outros prêmios, foi vencedora do troféu Jabuti em 2015 com a obra “Olhos d’água”. Já teve livros aprovados para o PNLD e é hoje uma das escritoras negras mais lidas do país, com textos marcados pela forte presença feminina e negra. 

Agora, vamos ao enredo: Fio Jasmim, o protagonista, tem um casamento prometido com Pérola Maria desde os 20 anos. Incentivado pelos amigos do trabalho e tomado por um trauma de infância, ele resolve exercer toda a sua virilidade sobre as mulheres que encontra pelo caminho. Uma delas, Neide Paranhos da Silva, uma jovem de 19 anos, cujos pés faz Fio reconhecer nela uma Cinderela Negra, o que o faz relembrar o grande trauma de sua infância: sua professora não o deixou ser o príncipe da história, mas, sim, um menino branco. Antes que ele parta, Neide pede que ele lhe dê um filho.  Depois de Neide, aparece Angelina Devaneia da Cruz, uma enfermeira, de 32 anos, que vivia à espera de um noivo para casar. Fio a conhece um pouco antes de se casar com Pérola e ao chegar à cidade dela é visto como o noivo pelo qual ela esperava, convencendo a todos, o que não passa de uma brincadeira que faz a moça cometer suicídio de tanto desgosto. 

        Aos 33 anos, Fio conhece Juventina Maria Perpétua, que tem apenas 17. Ele lhe dá uma margarida e ela enxerga nele a possibilidade de um amor e verdadeiro. Com ela, ele tem uma relação bem diferente das outras. Tornam-se amantes por anos, apesar dos conselhos de pessoas próximas a ela. Tina via nele a figura masculina que nunca teve em casa e escrevia-lhe diversas cartas de amor que ele nunca leu e que eram encontradas por sua mulher. Fio continuou conhecendo outras mulheres: Aurora Correa Liberto, uma moça alegre que nunca mais foi a mesma depois de deixada por ele, Dolores dos Santos, que teve duas filhas gêmeas dele; Dalva Ruiva, que teve mais três; Eleonora Distinta de Sá, com quem teve uma relação mais de amizade.  

        Anos depois, Depois de alguns anos, passa a viajar e procura compreender como funciona o amor das mulheres. Após 35 anos, termina de vez sua relação com Fio e dedica a ele o livro que fez. Fio reflete sobre os acontecimentos de sua vida: as mulheres, os filhos, e revê suas atitudes, mas agora é tarde demais para qualquer coisa. No fim, uma narradora-autora assume o foco como uma relatora da vida de cada uma dessas mulheres.

        Quanto aos elementos, o foco narrativo não se encontra no protagonista, mas nas vozes femininas que narram as histórias, retomadas por uma narradora que as reúne com suas vivências e experiências diversas. O tempo não é linear, pois faz uso do fluxo de consciência, partindo do presente do protagonista em direção ao seu passado. As mulheres com as quais se relaciona também não seguem uma ordem rigorosamente cronológica, formando uma narrativa fragmentada, porque o eixo está nas relações consumadas por Fio. Também não se encontra um contexto histórico especificado na obra.

São diversas as temáticas trabalhadas no romance, podendo começar pela masculinidade tóxica construída em cima do protagonista, um homem que deseja se mostrar viril e conquistador, incentivado pelos amigos e acreditando que isso iria deixá-lo no mesmo nível dos demais homens. Essa visão do personagem sempre acaba por voltar ao trauma da infância em que lhe negaram o papel de um príncipe. Apesar de belo, viril e desejado por tantas mulheres, ele ainda se sente inferior e não se livra da sensação de que está faltando algo. Por outro lado, essa busca se dá à custa dos sonhos e felicidade de várias mulheres com as quais se relaciona, inclusive uma delas acaba por tirar a própria vida, o que vem a reforçar a estrutura patriarcal de nossa sociedade.

        A obra explora a complexidade por trás da construção da personagem masculina, além de ressaltar que ele busca uma superioridade se baseando em um modelo que não diz respeito ao próprio negro. Não é só sobre machismo, mas racismo também. A autora preocupa-se com o rumo de homens e mulheres negras, vítimas constantes de tantos preconceitos. Fio é, ao mesmo tempo, vítima e algoz do sistema: se por um lado, iludiu e usou as mulheres, por outro, não se pode afirmar que todas elas eram inocentes a respeito de suas intenções.

        A obra é caracterizada por uma sucessão de elementos normalmente presentes no cotidiano, uma narrativa que se dá de forma plural (na voz das mulheres) no tocante aos mais variados temas que envolvem as relações entre pessoas envolvendo uma grande gama de sentimentos e emoções na busca por melhores referências simbólicas para homem e mulheres negros nesse Brasil. O protagonista, apresentado como anti-herói: um homem que machuca corações e continua machucado, acaba não sendo o destaque da narrativa, mas sim as mulheres que vão passando por sua vida e se tornando protagonistas de suas próprias histórias.  Chamo a atenção para um termo criado pela própria Conceição: "Escrevivência": que significa a união entre a escrita e a vivência, representado por cada personagem com destaque para as negras. 

        Fio Jasmim é o “menino grande” da narrativa, um homem que desde a infância sofre com a rejeição e, por isso, esse trauma permeia toda a sua vida, não o deixando crescer como adulto e tornar-se uma pessoa madura e bem resolvida. É um homem de aparência forte, de presença marcante entre as mulheres; mas, por dentro, ainda sente o vazio e a inferioridade que sentira ao ser trocado por um príncipe branco em sua infância. Fio representa os homens que seguem o manual e a tradição da dominação masculina, mas não passam de pessoas frágeis e infantilizadas.

EVARISTO, Conceição. Canção para ninar menino grande. Rio de Janeiro: Pallas, 2022.


quarta-feira, 24 de setembro de 2025

ARREPENDIMENTO TARDIO

Crédito: Iddea photo (Pexels)

                                                             Ah, quem me dera ao menos

uma vez

Sentir o hálito dos lábios

virgens que me beijaram

Tocar as mãos

angelicais que me acariciaram

Olhar nos olhos

profundos que me hipnotizaram.


Ah, se eu pudesse

pela última vez

Ouvir o som alegre

do sorriso que me encantou

Sussurrar um segredo

ao ouvido que me escutou

Deitar no colo

macio que me ninou.


Pobre de quem só descobre

o devido valor do bem 

que sempre se teve ao alcance

a partir do instante

em que ele o deixa

Fica-lhe somente o amargo

gosto da despedida.


Márcio Fabiano


terça-feira, 23 de setembro de 2025

A SEMENTE DA VERDADE (JUNHO 2025)

Imagem gerada por IA 

 

TEMA

            São inúmeras as lições de sabedorias contidas nas mais diversas tradições ao redor do mundo por meio de seus contos de origem popular. Tendo como berço a tradição oral e, por isso, de autoria desconhecida. Séculos mais tarde, quando surge o movimento de registrar no papel tais histórias para que elas não desapareçam essas narrativas viajaram pelo tempo, chegando até os nossos dias, algumas um pouco modificadas, outras já nem tanto, inclusive podendo ser encontradas em versões diferentes. Mas não foi somente uma viagem temporal, pois elas também atravessaram o oceano, vindas de culturas milenares como Japão, China e Índia, do longínquo oriente e hoje estão presentes em todos os cantos do planeta. Essa narrativa surgiu da vontade de resgatar uma dessas histórias, que não se trata de uma história infantil, mas um conto chinês que serve para a toda a família refletir sobre a questão da ética.

 SINOPSE

                 Em um reino tomado pela paz e pela harmonia, vive um imperador muito sábio e muito querido por todo o povo por ser considerado um homem bastante justo e ponderado em suas decisões. Depois de muito tempo no comando do reino, ele já começa a se sentir muito velho e sem o vigor de antes para liderar o seu povo. Como dedicou sua vida inteira ao serviço de todos, acabou optando por não casar nem formar uma família, portanto, agora idoso, não possui um descendente para ocupar o trono e seguir o seu caminho. Diante do urgente problema, reúne o seu conselho para comunicar a sua decisão antes de torná-la pública: irá submeter a um teste todos os jovens do reino que desejem o trono, portanto, seu comunicado dever ser levado aos quatro cantos do reino, sem exceção. Que espécie de teste aguarda os jovens? Como ele pode determinar quem está apto a ser um grande imperador? Não perca essa bela história.

 

A história que eu vou contar
Não foi criada por mim.
Nasceu pra lá do Oriente,
Em terras que não têm fim.
Foi há milhares de anos
E começa bem assim:
 
Lá para o lado dos campos,
Em uma casa modesta,
Vivia humilde família
E por sinal muito honesta.
Trabalhava na lavoura,
Muito próximo à floresta.
 
Propriedade pequena,
Com muito para fazer:
Cuidando da plantação
Para ter o que colher.
Todos ali ajudavam,
Pois assim tinha de ser.
 
Cada qual com sua parte,
Sem ninguém sair do trilho,
Inclusive uma criança,
Que era o mais novo filho,
Admirado por todos
Como um garoto de brilho.
 
Todo mundo já notara
Que o referido menino
Demonstrava seu talento
Desde muito pequenino:
Nasceu pra mexer na terra,
Era esse o seu destino.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A JORNADA DE UM HOMEM É FEITA DE SUAS ESCOLHAS

Domenico Di Michelino "Dante e os três reinos"
https://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/


Bem-vindo, caro leitor e cara leitora, meus grandes companheiros de jornada. É com essa célebre frase que retomamos nossa viagem literária, lembrando que, na semana passada estávamos nas terras áridas em algum canto da Espanha. Apertem os cintos novamente e aproveitemos então a pouca distância que nos resta para que possamos enfim chegar ao nosso próximo destino: a cidade de Florença, na bela Itália. Acho bom advertir a algum leitor desavisado que se encontre entre nós que poupe de imediato o seu entusiasmo se achar que vamos a algum cenário bucólico ou até mesmo romântico o qual essa cidade possa facilmente inspirar e voltemos à nossa frase inicial que se encontra escrita no portão do inferno. Isso mesmo, meu caro, você não entendeu errado. É justamente o ponto de partida de nossa viagem, com direito a guia e tudo o mais que o pacote dessa semana tem a nos oferecer. 

Estamos acompanhados do protagonista e escritor Dante Alighieri e acabamos de adentrar às páginas de “A Divina Comédia”, o que nos obrigará a voltar ainda mais no tempo, até os idos do ano de 1321, em que se deu a conclusão da obra e, simultaneamente, da morte de seu criador. Aqui vai mais um adendo antes do início: embora o título use a palavra comédia, nada tem a ver com algo cômico, engraçado, que trata do significado atual da palavra; mas porque ao contrário das tragédias (aquelas obras dramáticas em que “desgraça pouca é besteira”, como diziam os antigos) o termo “comédia” servia, nessa época para identificar as obras que possuíam um final feliz (olha aqui um “spoiler”). Essa revelação talvez possa imbuir os mais inocentes com algumas esperanças em um passeio que tem como ponto de partida um local que nada tem de agradável. Dizem por aí, inclusive, que o talentoso poeta levou quatorze (ou catorze se preferirem) anos para terminá-la. Pense bem. Isso acaba sendo algo inimaginável nos dias de hoje. Mas, continuando nosso passeio, temos a presença, nada mais nada menos, de um grande poeta clássico: Virgílio (admirado por Dante), um escritor romano que, entre outras obras, escreveu “Eneida”, poema épico que alcançou grande destaque na literatura universal. Esse homem, escolhido por Dante, vai guiar a todos nós até Beatrice, musa eterna do autor florentino. 

Como não poderia faltar, não podemos nos esquecer de acionar a nossa tradicional lista de reprodução para a viagem. Dessa vez, recomendo a “Sinfonia Dante”, concluída pelo compositor Franz Liszt, cuja estreia deu-se em 1857 com o próprio compositor como regente e deu o que falar na época. O compositor acabara de ler o livro e resolveu transformar a obra em música. Se o nobre leitor não está habituado à música erudita, peço que lhe dê ao menos uma chance, pois durante a audição dessa obra magnífica poderá perceber como Liszt consegue descrever por meio das notas musicais o clima denso e tenso proposto no livro.  

Mas voltemos à obra: com o poeta latino à frente, abrindo passagem, vamos percorrendo a terra da expiação e do fogo eterno; ele, que no caso, simboliza a razão, conduz o poeta mostrando os nove níveis sobre os quais está composto o plano infernal. É uma obra toda cheia de simbolismos e que representa o pensamento e a cultura da Idade Média. Assim sendo, o inferno fica nos subterrâneos (sempre para baixo), forma ainda frequente de pensamento popular como influência dessa obra. Ao passo que se caminha, encontram-se personagens famosos da história, associados aos mais severos malefícios referentes aos sete pecados capitais. Inclusive essa parte foi retratada com maior ênfase no best-seller “Inferno” (2013) de autoria de Dan Brown que como tema o mapa do inferno da obra e faz um verdadeiro passeio artístico pela cidade de Dante, ambientado em um clima de ação e suspense, tornando-se filme mais tarde.

É um livro que fala de tudo um pouco (uma verdadeira enciclopédia) como pode ser notado à medida que se avança. Entre suas diversas atribuições, não se deixa escapar o tom moralizante vinculado à Igreja, mas por curiosidade, boa parte das autoridades encontradas por Dante lá são papas dessa mesma Igreja (você já viu que não escapa ninguém). Até porque nosso protagonista representa o homem comum, que necessita seguir o caminho do bem e da ética, porém, como qualquer um nesse mundo, não é passível de dúvidas e se vê frequentemente tentado a fazer o contrário. 

As imagens vistas nessa primeira parte da viagem assumem um tom que aterroriza e choca. O poeta não poupa descrições sobre as expiações. Daí nasceu a palavra “dantesco” com o significado de horror de extrema grandiosidade como o gênio Castro Alves (o poeta dos escravos) aplicou com maestria em seu poema “Navio negreiro” quando diz: “Era um sonho dantesco... o tombadilho” ao escrever o espetáculo de horrores que era o tráfico de escravos. Passa-se agora para o segundo plano: o purgatório. Aqui as almas ainda tentam fazer algo para mudar sua condição de vida, buscando corrigir seus erros e desprender-se dos maus hábitos (pecados). É a famosa “segunda chance” que aos habitantes do plano anterior não foi permitida.

Chegando enfim à terceira etapa de nossa viagem, encontramo-la: a doce Beatrice. Despedimo-nos de Virgílio, nosso poeta guia, para, agora com ela, seguirmos a caminhada. Ela é o símbolo da fé, por isso foi elevada ao status de santa por seu admirador terreno, portanto a alma ideal para conduzir nosso viajante em direção ao paraíso.

Sabe-se que Beatrice era a musa do poeta. Sim, caro leitor, uma mulher de carne e osso e, assim como a enigmática Monalisa do quadro de Da Vinci, suscita as mais variadas cogitações acerca de sua verdadeira identidade, contudo ninguém tem certeza suficiente para bater o martelo sobre a questão. Inclusive, em relação a essa paixão, o poeta Olavo Bilac fez um belo soneto que possui, como título, o primeiro verso da Divina comédia: “Nel mezzo del camin” (1888), tendo como tema a tristeza do poeta pela repentina partida da amada e que termina da seguinte forma: “E eu, solitário, volto a face, e tremo, / Vendo o teu vulto que desaparece / Na extrema curva do caminho extremo”, descrevendo a morte da amada de forma metafórica

Não podia deixar de dizer que esse poema épico... Ah! Desculpe, caro leitor, mas esqueci de avisar que o livro todo é feito em forma de poema e, como se não bastasse, simétrico, ou seja, todos os versos têm o mesmo número de sílabas poéticas e esquemas fixos de rimas (talvez essa última informação justifique os quatorze anos de construção que levou para ficar pronto). Como ia dizendo, por mais absurdo que pareça tal viagem, desde o começo até o fim, (aqui cabe ressaltar que se trata de uma visão católica da época e, portanto, muito diferente de outras religiões e olha que nem toquei no ponto da percepção dos ateus sobre isso tudo), Dante trata da condição humana, sobre cada uma de nossas escolhas. Por mais que alguns possam achar uma obra impregnada de teologia e de dogmas, ela acaba chegando ao mesmo ponto: o que o homem faz de sua vida.

Para o grande poeta continuamos a escolher nosso próprio caminho. Esse livro é uma peregrinação da alma, do homem em busca de sua conversão, com o aviso de que necessitamos tomar uma atitude e saber fazer nossas escolhas, mas lembrando que a omissão também é um pecado (não escolher nada não deixa de ser uma escolha), como o poeta nos diz em um trecho: “No inferno, os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise.” Dante vem nos chamar a atenção de que não adianta ficar procurando um culpado externo para tudo, como nos diz Raul Seixas, na canção “Por quem, os sinos dobram”: “É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro”, pois vivemos em tempos que as pessoas sempre buscam desculpas que os isentem da responsabilidade, contudo ainda somos nós os responsáveis por nossas vitórias e derrotas. Vivemos em um mundo repleto das mais diversas tentações que, ampliadas pelas redes sociais, buscam oferecer o caminho mais fácil para se alcançar o topo do monte. Que cada um de nós possa escolher com sabedoria a própria jornada, sabendo que são nossos passos que constroem a estrada do nosso destino. Muito obrigado pela companhia. Até a próxima viagem.

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. São Paulo: Principis, 2021.

sábado, 20 de setembro de 2025

MEMORIAS DE MARTHA (LISTA FUVEST)


 

Caros vestibulandos e leitores, hoje seguimos com nossa breve análise dos livros para o vestibular da FUVEST. Agora é a vez do livro “Memórias de Martha”, da escritora Júlia Lopes de Almeida, obra originalmente publicada em capítulos, como os folhetins românticos entre os anos de 1888 e 1889. Ao longo do tempo, foram lançadas três edições que possuem algumas pequenas diferenças. O romance, lançado em 1888, sempre foi sinônimo de dificuldade para ser obtido, apesar de sua importância histórica como o primeiro enredo sobre um cortiço.

                Agora, como já é de praxe, vou apresentar em poucas linhas sua autora: Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida foi escritora, cronista e teatróloga. Escreveu literatura infantil, romances, crônicas, peças de teatro e, desde o início, suas obras já demonstravam uma mulher à frente de seu tempo. Júlia fazia parte do grupo que planejou a criação da Academia Brasileira de Letras, contudo ficou de fora da primeira lista de “imortais” pelo simples fato de não ser homem. Em seu lugar foi empossado o marido, o escritor português Filinto de Almeida.

Mas, antes que alguém pergunte, vamos para a história: tudo começa por uma mulher já adulta, que começa a contar sua vida desde quando criança. Martha, a protagonista, perde seu pai, provedor da família. Com isso, a mãe, que também se chama Martha, não vê outra solução a não ser trabalhar como engomadeira para poder sustentar as duas. Elas, que tinham uma vida até razoável, com certo conforto, agora, com a pouca renda originada do serviço da mãe, veem-se obrigadas a morar em um cortiço em São Cristóvão, lembrando que os cortiços eram a grande sensação de moradia popular na época. A filha sente tremenda repulsa pelo lugar: úmido, constante mau cheiro devido a se localizar próximo a um matadouro, sempre sobrevoado por diversos urubus. Como se não bastasse, o quarto em que vivem é descrito como estreito, escuro e abafado, como de deveriam ser todos os outros, pois os cortiços eram quase que a última alternativa em questões de moradia devido a precárias estruturas e a localizações desfavoráveis.

A mãe, agora também costureira, trabalha arduamente para poder prover o sustento do lar e procura propiciar à filha a oportunidade de estudar, o que acaba se tornando o grande objetivo de Martha. Tudo o que ela mais quer é sair do cortiço, pois aquele ambiente cada vez mais a faz sentir a humilhação de ser pobre. Isso fica mais evidente ainda quando ela começa a comparar sua vida com as demais meninas que frequentam a escola com ela. Tal sonho começa a se tornar possível desde o momento em que Martha entra na escola. Lá ela conhece D. Aninha, uma professora que passa a incentivá-la para que estude e para que tente a carreira no magistério. Depois de algum tempo, Martha se torna adjunta e passa a receber um salário. Sua situação começa enfim a mudar porque agora ela já consegue alugar uma pequena casa e, finalmente, deixar de uma vez por todas o cortiço, o que pode ser encarado como uma grande vitória em sua vida.

Entretanto, nada disso vem fácil assim para ela, tudo é fruto de um esforço absurdo, pois a vida começa a mostrar as barreiras que toda mulher enfrenta em sua busca por independência. Ela chega a ser diagnosticada como histérica e o ouve do médico que deveria procurar por casamento, como se esse fosse o seu problema: não ter um homem ao seu lado. Procurando ajudar a moça para aliviar a tensão e a pressão social, D. Aninha a convida para passar as férias com ela em um lugar distante dali. Nesse local, ela é apresentada para Luís, primo de sua professora. Ela acaba se apaixonando por ele, todavia eles são muito diferentes, pois enquanto ele parece ser um rapaz cheio de vida, alegre e extrovertido, ela anda sempre triste, séria demais e muito tímida. Ao não ser correspondida, Martha acredita que a causa seja por ela ser feia e pobre. Aqui notamos que uma espécie de complexo de inferioridade a persegue.  A situação leva a moça a questionar se realmente o amor verdadeiro existe.  

Enquanto estava de férias, ela escrevia frequentemente cartas para a sua mãe. Nelas, demonstrava toda a sua paixão por Luís. A mãe passou a mostrar as cartas para um cliente chamado Miranda, que há um tempo estava viúvo e desde então vivia sozinho com os filhos. Após tantas leituras e comentários da mãe, Miranda acaba se apaixonando por Martha por causa de seus escritos, pois nunca tivera qualquer contato com ela. Ela finalmente participa de um concurso para professora e acaba sendo aprovada. Miranda então pede sua mão em casamento. Num primeiro instante, ela não aceita porque não sente nada por ele.

Martha, agora mais do que nunca, tem a possibilidade de ser independente, porque já possuía um emprego e, portanto, não precisava se casar por conveniência. Porém a mãe insiste com ela sobre a frágil reputação das mulheres que permanecem solteiras depois de certa idade. Depois de pensar e ouvir a mãe, ela decide aceitar, mas não deixa de lembrar seus sonhos e lamentar seu destino.  Depois de oito dias do casamento, a mãe vem a falecer. Ao que tudo indica, estava adiando o fim até que tivesse certeza que sua filha não ficaria desamparada e que, enfim, sua missão fora cumprida. Agora podia descansar em paz após essa luta de tantos anos. Martha termina sua narrativa dando-se por realizada com o espaço que conquistou.

Quanto aos elementos, o foco narrativo conserva-se na primeira pessoa, com a própria Martha sendo a narradora e protagonista. O leitor acompanha suas lembranças, iniciando pela infância, passando pela juventude difícil e chegando enfim à vida adulta. Tal história é contada por meio de suas percepções e reflexões sobre o ambiente à sua volta, permitindo ao leitor ver de perto as experiências e emoções de Martha. Ao explorar a subjetividade da personagem, o leitor pode ter uma visão íntima da realidade social da época, o que vem a reforçar a crítica social, pois, por meio de suas experiências, tem-se acesso às dificuldades enfrentadas pelas mulheres de sua época. O retrato dela é o retrato da mulher no final do século XIX.

O tempo da narrativa é marcado pela alternância: o momento presente em que a protagonista relembra sua história e a infância e juventude, permitindo que se acompanhem suas recordações, mesclando suas impressões do passado com reflexões de sua trajetória, pois se trata de uma mulher madura que interpreta os eventos do passado com a experiência do presente, podendo compreender as marcas que o tempo deixou. O espaço central da narrativa é o cortiço no Rio de Janeiro, onde Martha e sua mãe vivem em condições precárias. Outros espaços são citados, porém com menor importância, na maioria das vezes, servindo como contraste com a realidade do cortiço, símbolo da miséria e desigualdade, revelando a crítica social da obra.

A obra apresenta-se por meio de diversas transgressões: autoria de uma mulher, a não aceitação do casamento por Martha, o seu atributo intelectual e não físico como era comum nas protagonistas, demonstrando a profundidade tão ignorada das mulheres. Destaque para os estudos e o trabalho como desejos de uma mulher e trilhas para sua satisfação, valorizando  

a posição de independência e enfatizando a capacidade da mulher para vencer desafios. Além disso, há um certo pioneirismo em focar a educação como uma forma de ascensão social.  Martha busca o casamento como ato de amor e não como garantia econômica. Mas seu caminho não será nada fácil diante das hostilidades que recebe de uma sociedade patriarcal.

Na obra, podem-se observar elementos do Realismo, como descrições detalhadas de cenas e espaços do cotidiano, também elementos do Naturalismo como a questão do Determinismo que, acaba sendo refutado, em parte, pelo exemplo da protagonista. Apesar de acabar cedendo a uma vontade da mãe e acabar se casando em nome da estabilidade, da moral e dos bons costumes, Martha termina o romance sentindo-se uma vencedora.

                Vou ficando por aqui, caro vestibulando. Espero ter sido útil. Até a próxima obra.

ALMEIDA, Júlia Lopes de Almeida. Memórias de Martha. São Paulo: Via Leitura, 2024. 

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

DUAS PAIXÕES NUM SÓ CORAÇÃO


Zeca Pereira é poeta, cordelista e editor. Desde 1993, trabalha com literatura de cordel, primeiro como folheteiro, depois como cordelista e, por último, como editor. Tem ministrado oficinas de poesia e de literatura de cordel nos mais variados eventos pelos quatro cantos do Brasil. Como cordelista tem dezenas de cordéis editados, com destaques para “A confissão de um drogado” editado pela Editora Luzeiro e “A alma de uma sogra” que está indo para sua sétima edição. Como editor tem organizado inúmeras antologias reunindo cordelistas de todo país. É o atual bicampeão do concurso de cordel (ZOORDEL 2022/2024) organizado pela Universidade Estadual de Feira de Santana e pelo Museu do Sertão. Há algum tempo escreveu, vendo a necessidade de aprimoramento e de conhecimento sobre o cordel, um manual com as técnicas de escrita intitulado ABC DO CORDEL. Zeca também é membro da Academia Barreirense de Letras.

Seja bem-vindo, Zeca, ao nosso espaço de entrevistas do blog Cosmo Literário. É uma grande alegria ter você aqui conosco para esse bate-papo.

O prazer é todo meu e espero corresponder às expectativas dessa entrevista.

Você, cordelista já há um bom tempo, pode começar nos contando como foi que começou essa história com o cordel? Como você se tornou um escritor conhecido e em atividade até hoje?

Meu contato com o cordel foi através de amigos de infância. Nós comprávamos os cordéis na feira, líamos e passávamos dia e noite decorando. Tudo isso só para saber quem conseguia decorar mais estrofes. Com o passar do tempo me tornei um folheteiro nas feiras de Barreiras e de São Desidério (município vizinho) a partir de 1993. Somente em 2002 editei o meu primeiro cordel intitulado Os lamentos de um ancião no asilo.

O que chamou e ainda chama a sua atenção no cordel que você não encontrou em nenhum outro gênero literário e fez você seguir com ele até hoje?

O que mais me cativou foi a maneira simples de se narrar uma história e a forma como você pode envolver as pessoas com ela, lendo, declamando ou até mesmo cantando as histórias. Como eu tenho dito: "Têm coisas que só acontecem no cordel".

Nesse longo caminho que você tem trilhado, você chegou a ter alguma referência que o inspirou ou o conduziu como cordelista?

Claro. Eu posso afirmar que a minha referência são os clássicos do cordel brasileiro. Sempre busquei saberes nos cordéis de Leandro Gomes de Barros, Manoel D’Almeida Filho, Antônio Teodoro dos Santos, José Pacheco da Rocha entre tantos outros.

Falando em clássicos, você tem defendido constantemente nas redes sociais a leitura dessa classe de cordéis. De uma forma geral, você nota uma grande diferença entre eles e os cordéis que são publicados na atualidade?

Nos cordéis clássicos encontramos tudo que um bom cordelista precisa para escrever de maneira clara e envolvente seduzindo o leitor, fazendo com que ele vá da primeira à última estrofe e ainda ficar com o desejo de querer mais. Posso até comparar como algo viciante. Os cordéis de hoje em dia não são tão atrativos, tanto que alguns autores editam 100 exemplares e passam mais de um ano para vender. Vejo alguns autores ainda presos em temáticas do passado como: fome, seca, miséria, amores proibidos etc... E isso já não chama mais a atenção dos leitores, principalmente dos jovens.

Concentrando-se na estrutura do cordel, que tem como base os princípios da métrica, rima e oração; você considera que dominando esses três elementos o cordelista tenha garantia suficiente de um bom cordel? Por acaso falta mais alguma coisa ainda?

Como você disse: rima, métrica e oração são os três pilares que sustentam o cordel, no entanto, há outros elementos necessários que não podem ser esquecidos como a linguagem usada, uma boa dose de lirismo, entre outras coisas. Eu costumo dizer que a melhor cartilha para aprender a escrever um bom cordel são os clássicos publicados pela Editora Luzeiro, pois foi com eles que aprendi o passo a passo da boa escrita.

Em sua considerável trajetória, que começou antes do advento da tecnologia, como você enxerga, nesse exato momento, a influência das mídias e das redes sociais na divulgação da literatura de cordel? Houve alguma mudança positiva e/ou negativa?

As mídias e as redes sociais têm sido muito importantes para a divulgação do cordel, aquilo que, para muitos, parecia que iria atrapalhar, no fim das contas, veio para ajudar. Por outro lado, é uma pena que existe muita gente nas redes que sai escrevendo qualquer coisa por aí e depois sai dizendo que é literatura de cordel. Fora isso, não há do que reclamar.

Além do cordel, muitos dos seus leitores não devem saber, mas você também exerce a atividade de radialista. O que o levou ao rádio? Como você faz para conciliar essas duas atividades tão diferentes?

Minha atividade como radialista começou em 2017. No início, o programa apresentado era voltado para o cordel e para o repente. Eu apresentava sempre aos sábados das 18h às 20 horas. Talvez pelo horário ou também pelo público não estar acostumado a ouvir repente, o programa não decolou, No ano seguinte, inaugurei outro programa das 16h às 18h de segunda à sexta, esse, voltado para o brega e para o sertanejo, o que foi um sucesso, tanto que até hoje é o programa com maior participação de ouvintes. Cordel e rádio são minhas paixões, mas como juntar não deu certo, tenho separado o público do radio e do cordel, diferente de outros radialistas que também são cordelistas. Muita gente que ouve o meu programa não sabe que escrevo assim como também muitos leitores espalhados neste país não sabem que sou radialista e assim eu tenho dois públicos distintos.

Quando foi que surgiu na carreira do escritor a ideia ou a necessidade de também ser um editor? Como se deu esse processo?

Na verdade todo escritor já é um editor o que falta é só expandir o número de edições. Eu, por exemplo, editava meus cordéis em gráficas, porém era tudo coordenado por mim: imagem da capa, diagramação, fonte etc. A ideia de ser um editor de obras de outros autores surgiu após a Editora Luzeiro, em 2016, resolver não lançar mais novos autores. Então comecei a formar parcerias. No caso, eu editava 250 exemplares, 100 exemplares o autor comprava de mim e os outros 150 iam para o catálogo da Nordestina Editora. Também passei a editar cordéis de domínio público, principalmente os de Leandro Gomes de Barros.

Deve haver diversos escritores por aí que já devem ter cogitado a ideia de também serem editores. Que conselhos você pode dar a eles em relação aos maiores desafios que você encontrou?

Na verdade, a maioria dos novos editores surge a partir do momento que aprendem a diagramar e imprimir o seu próprio cordel, porém, é necessário entender que ser um editor vai muito além disso. É preciso estudar sobre os editores, ter visão sobre o que pode ser melhorado nas edições, criar estratégias de venda, precificação e ainda ser um bom empreendedor. O meu maior desafio como editor sempre foi encontrar novos revendedores. No passado, havia os folheteiros que viviam de feira em feira vendendo cordéis. Hoje, eles são os donos de bancas de revistas, livrarias e papelarias e muitos não têm o interesse de revender cordéis. Alguns na verdade nem sabem o que é cordel.

Após tanto tempo como cordelista, você se aventurou pela prosa e publicou o livro “O cordelista tem que morrer”. Como surgiu essa ideia? Houve alguma diferença no processo criativo?

A ideia de escrever em prosa foi por ter feito de improviso algumas estrofes engraçadas zoando os amigos, principalmente em bares, e essas estrofes ficarem circulando entre eles, mas eu não tinha como aproveitá-las para impressão. Então surgiu a ideia de criar o personagem Zé do Cordel e escrever sua história em prosa, aproveitando as estrofes que seriam ditas por ele de improviso. O processo de criação foi muito lento pela falta de experiência e não saber como finalizar a história. O processo levou cerca de quatro anos, mas valeu a pena.

Zeca, o blog Cosmo Literário agradece o seu tempo e a sua presença. Foi muito bom poder ouvir as suas experiências literárias. Até a próxima.

Sou eu que agradeço pelo espaço para tratar de um assunto tão importante que é a literatura de cordel reconhecida como patrimônio imaterial brasileiro. Um abraço e até a próxima


quinta-feira, 18 de setembro de 2025

BALADA DE AMOR AO VENTO (LISTA FUVEST)


 

        Caros leitores e vestibulandos, hoje é dia de estreia da nossa página de livros para vestibular da FUVEST. Começaremos pela obra “Balada de amor ao vento”, da moçambicana Paulina Chiziane. Primeiramente, gostaria de frisar a importância simbólica desse livro que é considerado um marco na literatura moçambicana. Afinal de contas, trata-se do primeiro romance escrito por uma mulher, publicado em 1990, sendo também o primeiro a expor as temáticas do universo feminino. Guarde essa informação!

        Mas, antes de falar sobre a obra, achei necessária uma pequena apresentação da autora, pois, acredito eu, seja uma célebre desconhecida de estudantes e leitores brasileiros, então vamos lá: Paulina nasceu numa família protestante e cresceu no subúrbio da cidade de Maputo, capital do país. Aprendeu o português em uma escola católica e começou seus estudos de linguística na universidade, mas não chegou a terminá-los. Entrou para a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), mas, com o tempo, deixou a política para que pudesse se dedicar de forma exclusiva à literatura. Assim, iniciou sua atividade literária em 1984. Desde então, suas obras têm gerado algumas polêmicas acerca de questões sociais até porque a escritora discute temas nunca discutidos antes em sua terra, além do mais por uma mulher. Em 2016, decidiu abandonar a escrita. Ao longo da carreira, recebeu homenagens e condecorações, das quais convém destacar o Prêmio Camões (2021), considerado reconhecimento máximo a um escritor de língua portuguesa, além de ser tema de um documentário e ainda figurar na lista das cem mulheres mais inspiradoras do mundo, elaborada pela BBC.

         Agora, sem mais delongas, vamos ao que interessa: o tradicional resumo da narrativa, como resposta à clássica pergunta do aluno “Qual é a história?”. A protagonista, Sarnau, agora adulta, começa falando de suas lembranças, direcionando o leitor à sua juventude. É nessa época de estudos que ela conhece Mwando. Acontece que os dois acabam se apaixonando perdidamente e assim permanecem por um bom tempo. O rapaz vive um grande conflito interno porque está estudando com o desejo de tornar-se padre, mas, ao mesmo tempo, encontra-se perdidamente apaixonado por ela. Por fim, seu romance acaba por ser descoberto e ele acaba expulso do seminário. Ela, ainda muito apaixonada, descobre que está grávida e, para sua decepção (e esta é apenas a primeira de muitas), é abandonada por ele, que tem um casamento arranjado com uma moça, escolhida por seus pais por ser rica e de família católica.   

        Sarnau dá início a um penoso caminho, sozinha. Totalmente arrasada, resolve cometer suicídio para dar fim ao seu sofrimento, mas é salva. Como alternativa, procura um “griot” (espécie de curandeiro local) para abortar a criança da qual não conseguirá cuidar nas atuais condições. De repente, a vida lhe dá uma nova oportunidade: casar-se com Nguila, aquele que está destinado a ser futuro rei de sua terra. O casamento é realizado, Sarnau desfruta de uma vida de luxo e de estabilidade, o sonho de tantas mulheres de sua terra, porém, para a surpresa de muitos, não se sente nada feliz. Primeiro pela constante pressão para dar à luz um filho homem, pois só havia parido gêmeas, lembrando que estamos falando de uma sociedade patriarcal, na qual só o homem tem valor, ainda amarga uma convivência difícil com as outras esposas (seu marido, como tantos outros, é adepto da poligamia), que disputam a atenção principal do marido, em especial Phati. Como se não bastasse tanto desgosto, ainda sofre com a violência doméstica

           É em meio a esse mar de frustrações que, de repente, reencontra o antigo amor, Mwando, que resolve explicar sua saga: foi abandonado pela esposa logo após a morte de seu filho único. Logo após essa perda, ela o trocou por outro.  Diante de seu confesso arrependimento, Sarnau se vê dividida entre manter seu casamento (vida sofrida e estável) ou fugir com o grande amor de sua vida (que já a havia abandonado uma vez). Tudo isso ocorre justo agora que um curandeiro tinha feito com que o marido voltasse a procurar por ela, pois a disputa entre as esposas segue firme. Ela volta a se relacionar clandestinamente com o antigo amor e, para variar, volta a ficar grávida dele. Ele insiste para que fiquem juntos. Uma de suas adversárias, Phati, acaba denunciando-a por adultério. 

            Sarnau decide fugir com Mwando deixando tudo e todos para trás por causa dele, inclusive as filhas. Mais tarde, adivinha o que acontece? Com o argumento de temer alguma espécie de vingança do rei, ele a abandona (mais uma vez e grávida), o que talvez não cause ao leitor surpresa alguma. Novamente sozinha e desamaparada (já virou um hábito) é obrigada a se prostituir para devolver a quantia do “lobolo” (espécie de dote que a noiva recebe do noivo como compensação ao casar-se e que deve ser restituído em caso de separação) de Nguila. Sua filha Chivite passa mal e, de acordo com os curandeiros, só se curaria quando recebesse o nome do espírito causador de seu mal, por isso é renomeada Phati. O tempo vai passando e, tempos depois, como fosse uma maldição ou um “flashback”, quem ela reencontra? Ele mesmo: Mwando, que, para o espanto de todos, agora se diz novamente arrependido e conta mais um episódio de sua história, agora dos anos que passou nos campos de trabalho forçado em Angola. 

                Cansada de suas promessas, ela diz que desta vez ele terá que pagar o lobolo para poder ficar com ela, ao passo que ele a recrimina por se prostituir, recebendo a resposta de que foi apenas a consequência da situação em que mais uma vez ele a deixou. Dividida novamente entre a razão e a emoção, pressionada por seus sentimentos antigos e pela filha que necessita de um pai, ela acaba o aceitando de volta e assim termina a história.

     A respeito dos elementos narrativos, temos um foco narrativo em primeira pessoa, tudo é contado do ponto de vista de Sarnau, compartilhando com o leitor cada experiência. Ela não observa somente, mas sua narrativa vai sendo formada por sua vivência. É a voz que põe fim à mordaça patriarcal, permitindo que se possam conhecer seus pensamentos e sentimentos. Há apenas uma mudança de foco para a terceira pessoa nos capítulos que descrevem a relação de Mwando com sua esposa Sumbi. 

        O espaço limita-se a Moçambique, com destaque para alguns locais importantes para a protagonista, que nos mostram o contexto social do país na época e que buscam apresentar a cultura moçambicana, a vida nas aldeias e nas cidades, o choque entre a tradição africana e a sociedade colonial. O tempo, no contexto histórico da obra, situa-se no período colonial português; quanto à narrativa, é contado a partir do ponto de vista dela, já idosa, que relembra seu passado, portanto, não se trata de uma narrativa linear, de modo que as situações se repetem.  

    Entre as temáticas presentes, destacam-se o dilema entre os desejos individuais e o futuro imposto pela tradição e pela cultura; a denúncia da opressão e da exploração das mulheres na sociedade moçambicana; as dificuldades que elas enfrentam na luta por respeito e liberdade; a tensão entre a cultura cristã e as tradições africanas, exposta nas crenças e nos costumes; a estrutura social dominada pelo patriarcalismo e pela poligamia. 

    Destaque para a linguagem presente no livro que, de forma poética, contribui com leveza para um enredo marcado pela densidade conferindo leveza poética a um enredo denso e complexo, representada por diversas figuras de linguagem, como a palavra “vento”, que faz parte do título, representando a liberdade e a mudança constante de curso. Há também de se observar a presença da oralidade africana, trazendo elementos simbólicos e míticos. A descrição lírica da natureza é constante, simbolizando prazeres e frustrações, criando um contraste com a realidade cruel de um país devastado pela guerra e por inúmeros conflitos.

    Espero ter ajudado o caro vestibulando com esse texto. Conto com você novamente por aqui. Até a próxima!

CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 

 


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Crédito: Dima Valkov (PEXELS) Mesmo que te seja a vida Tão difícil caminhar E a estrada longa demais Para ao fim poder chegar Comece com um ...