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| Crédito: Freies Deutscher Hochstift |
“É verdade que o caminho seria mais curto e mais cômodo se não
fosse a montanha; mas a montanha existe e é preciso seguir viagem”.
Sejam bem-vindos, caro leitor e cara leitora, a mais um capítulo de nossa jornada rumo às profundezas do próprio homem. Hoje nosso deslocamento será mais rápido, pois cobriremos uma pequena distância, deixando a Suíça, com o enredo de horror que presenciamos, e nos dirigindo à Alemanha. Vamos ajustar nosso relógio para um passado mais longínquo, para ser mais preciso, no ano de 1774. Hoje, diferentemente das outras vezes, não teremos trilha sonora. Seguiremos ao som ensurdecedor do silêncio e, ao final deste texto, o leitor poderá entender minhas escolhas de hoje.
Ao fim de nossa pequena
viagem, encontramos nosso herói, o jovem Werther, rapaz de origem burguesa, o
qual segue em direção ao ambiente campestre. Posso adiantar aqui que ele busca
a tranquilidade dos campos (locus amoenus), aliás, a ideia de que a natureza é
o refúgio em que o homem encontra o verdadeiro equilíbrio, livrando-se das
ilusões da cidade, já vinha sendo colocada neste século por meio do Arcadismo,
que aconselhava a fuga da cidade (fugere urbem) para que o homem pudesse se
encontrar, pregando o bucolismo, ideal de vida que pode ser representado de
forma perfeita na música “Casa no campo”, interpretada na belíssima voz de Elis
Regina, composta despretensiosamente por Zé Rodrix em uma viagem entre Brasília
e Goiânia.
Então o caro
leitor deverá se perguntar: “O que esse rapaz procura?” Respondo: Werther tenta
fugir de duas agitações: a sociedade burguesa da qual faz parte e o turbilhão
de sentimentos que se apossam de seu interior como uma intensa tempestade que
varre suas certezas de um lado para o outro. O protagonista é um retrato fiel
da juventude de sua época, espalhada por todas as nações da Europa. Ele não
nutre nenhum sentimento de pertencimento ao mundo em que se encontra, provando
de um profundo desapontamento em relação aos seus anseios como indivíduo.
Werther parece não se encaixar em lugar nenhum, um verdadeiro desajustado, um
estranho.
No primeiro
momento, parece a fuga uma ótima forma então de o personagem tentar repensar
sua vida e colocar seu mundo nos eixos, imerso na harmonia da mãe natureza. Porém,
nesse cenário idílico, ele acaba conhecendo Lotte, uma bela moça que, a
princípio, faz com que o jovem se esqueça um pouco da turbulência do mundo à
sua volta. Com o passar do romance, vamos notando uma cumplicidade cada vez
maior de olhares e gestos entre os dois. Cada vez mais eles notam suas
afinidades, tanto que seus diálogos costumam ser curtos e breves pois eles se
comunicam pela linguagem da literatura, por meio das personagens e livros que
leram e conhecem.
Se o caro leitor tem
alguma noção sobre o Romantismo (custou para chegar a ele, embora eu o tenha
citado com frequência) cuja obra aqui descrita é considerada seu marco oficial
e grande representante, já sabe que no bojo de sua fórmula previsível consta um
par romântico e um obstáculo ao seu amor como causa do conflito. Também por
isso chamamos o protagonista de herói, pois o mesmo terá que lutar contra o
mundo, movendo céus e terras para que seu amor atinja a plena realização
(estratagema ainda usado sem parcimônia nas telenovelas, seriados filmes, livros
e até propagandas). Com esse simpático casal não seria diferente: ela está
noiva, prometida em casamento a Albert, que agora adentra ao romance, voltando
de viagem a fim de desposar a bela Lotte.
Não
preciso nem explicar ao caro leitor o quanto essa fatídica notícia abala o
mundo – já em ruínas – do protagonista, que parte para outra cidade, arranjando
uma nova ocupação para assim, quem sabe, distrair o coração ferido por tantas
frustrações. Cabe aqui lembrar que os autores românticos não costumavam ser
ponderados, portanto, seus desfechos sempre pendiam para um dos dois extremos:
o final feliz ou o final trágico – traço de sua personalidade extremista. Como
o leitor também espera, não importa o que Werther faça, ele não a esquecerá, de
forma alguma. Ela irá se casar com Albert e eles terão um último encontro.
Confesso ao amigo
leitor, que tem me acompanhado até aqui, que esta foi a minha mais difícil
escolha entre as obras que aqui citei desde nosso primeiro encontro, esperando
que em breve me faça entender. Porque, diante da situação, quebrarei uma das minhas
regras pessoais ao falar sobre um livro: contarei o seu final. Tomado pela
pressão dos sentimentos que o invadem e pela dor do amor não realizado, cabe
lembrar que essa é mais uma rejeição que ele sofre (a pior de todas elas), nosso
herói opta, no ápice do desespero, por tirar a própria vida, recebendo o título
de “primeiro suicida” da literatura. Dizem por aí que essa trama é resultante
de uma experiência real de amor não correspondido pela qual passou seu autor
Goethe, que encontrou, como uma forma de escape ao sofrimento, matar a própria personagem,
para que pudesse seguir sua vida em frente novamente.
Tenho assumido,
desde o começo, o compromisso de mostrar o quanto a literatura tem em comum com
a realidade. Eis o que farei mais uma vez. Acredito, caro leitor, que Goethe
jamais tenha imaginado que captaria com tanta maestria o que os alemães chamam
de “Zeitgeist”, que seria para nós o espírito de uma época. Ao ser publicado e comercializado,
o livro começou a influenciar toda uma geração que, ao ler tal obra, acabava
por se identificar com ela, tomando o mesmo final do protagonista. Houve
relatos de uma onda de suicídios por diversos cantos da Europa em que as vítimas
eram encontradas ou vestidas como a personagem ou abraçadas ao livro,
resultando em sua proibição.
Cheguei agora à
encruzilhada que já previa inevitável: ah, caro leitor, Werther abriu mão de
seu bem mais precioso: a vida. Não suportou a pressão da sociedade que não o
via como ele desejava nem suportou ao ataque de seus próprios demônios. Com
esse final trágico, Goethe apresenta o conceito romântico de escapismo, a fuga
da realidade. Ao considerar a morte como uma liberdade da vida que não se
suporta, ele lança ao mundo um de seus maiores tabus. Proibir que se lesse o
livro foi uma solução dada ao problema, muito parecida com o que temos ainda
hoje: ao não se falar da questão, ela não será lembrada e, não sendo lembrada,
não virá à tona. Confesso que às vezes acho que os adultos escolhem formas
muito estranhas de resolver seus dilemas.
A psicologia usa
o termo “efeito Werther” para explicar quando a divulgação de um suicídio
funciona como um gatilho, gerando uma visão romantizada do mesmo como uma bela
solução, induzindo à sua prática. Essa explicação é bem minha, livre de grandes
estudos e termos técnicos. Nosso herói não partilhou sua dor com ninguém,
falando da mesma somente na carta que deixou para Lotte após sua morte.
Gostaria de lembrar da campanha do ”Setembro Amarelo” sobre a valorização da
vida e a prevenção ao suicídio. Inúmeras pessoas de diversas idades dão fim à
própria vida, entre elas, crianças e jovens. Essa campanha prega um maior
diálogo sobre o tema como forma de prevenção, mas também me deixa a pergunta:
Por que se preocupar com um tema tão importante somente um mês por ano? Segundo
os estudos, noventa por cento dos casos de suicídio poderiam ser evitados mas,
se as pessoas se recusam a falar disso, como resolver?
É preciso
desmitificar o assunto (tantos ainda acham isso frescura, meio de chamar a
atenção, fraqueza, modinha – sem falar na questão de pecado), buscar ajuda e
orientação profissional (ninguém melhor que o psicólogo) e também uma conversa
com um bom amigo. Faz-se necessário uma luta maior pela vida, bem supremo,
precioso, intransferível. Se o caro leitor não crê em Deus, não tem problema
nenhum, desde que acredite nessa energia pulsante e mágica que corre em suas
veias e faz de você uma pessoa única no mundo.
Que cada um de
nós possa trazer consigo: a loucura sonhadora de Dom Quixote de fazer dessa
existência algo bem melhor, a gana de Ulisses de enfrentar os deuses para
voltar para casa e para os seus, a fé de Dante ao percorrer os anéis infernais
na certeza de que algo de bom o espera do outro lado. Retomo a frase do romance
que abre o nosso texto, encerrando nossa viagem de hoje com a bela canção do
saudoso Gonzaguinha que poderia receber o título de “Hino á vida”: “Viver e
não ter a vergonha de ser feliz / Cantar, /
A beleza de ser um eterno aprendiz / Eu sei / Que a vida devia ser bem melhor e
será, / Mas isso não impede que eu repita: É bonita, é bonita e é bonita!” Até a próxima viagem.

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