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| Crédito: Rockwell Kent: The Whale (PICRYL) |
“A coragem mais útil e digna de confiança é a
que nasce da justa avaliação do perigo que se enfrenta; um homem inteiramente
desprovido de medo é um companheiro muito mais perigoso que um covarde”.
Vamos embarcar na
companhia do narrador Ismael, nome de origem bíblica (primogênito de Abraão), nosso
guia nessa pitoresca viagem. E quando digo embarcar, refiro-me literalmente à
viagem de hoje, pois iremos singrar os mares a bordo do navio Pequod, um navio
baleeiro. Ele mesmo nos confessa: “sempre que sinto na boca uma amargura
crescente, sempre que há em minha alma um novembro úmido e chuvoso... então
calculo que é tempo de fazer-me ao mar o mais depressa possível”.
Você já deve ter
entendido que se trata de uma caça às baleias. Exato, meu amigo. Essa é uma
atividade muito comum e lucrativa para a época devido à extração dos ossos para
a confecção de peças das mais variadas e da gordura que mantinha acesas as
chamas das lamparinas. Tudo começa com a bênção do padre e um sermão sobre a
leitura de um trecho do livro de Jonas, famosa passagem conhecida por Jonas e a
baleia. Você deve ter pensado agora: “Quanta coincidência!” Ah, caro leitor,
não banque o inocente. Na literatura não existem coincidências. Jamais. Tudo é
pretexto para o texto. Cabe lembrar que a baleia é a simbologia do divino em
diversas culturas. Mas, deixemos de digressões e, retomemos nosso rumo.
Este livro de
Herman Melville foi inspirado na saga do navio baleeiro Essex, que culminou com
seu naufrágio em 1820, vitimado pelos ataques furiosos de uma baleia (olha a
realidade chegando logo cedo). Tragédia muito bem adaptada para as telas no
filme “No coração do mar” (2015) pelo diretor Ron Howard. Peço licença em nossa
história para uma importante correção: não se trata de uma baleia, mas, sim, de
um cachalote. Vai que um dos meus seletos leitores tem formação em biologia e
me denuncia por uma gafe dessa natureza. É isso mesmo que você pensou: Moby
Dick, chamada ou conhecida universalmente por baleia branca, eternizada (como o
primeiro monstro marinho da literatura) dessa forma em desenhos de época como
Pica-pau, Tom e Jerry e, até mesmo, um desenho só seu nas décadas de 60 pelos
magos Hanna Barbera é, na realidade, um cachalote (Physeter macrocephalus), um
magnífico espécime, obra-prima da criação, com seus aproximados vinte metros e
quarenta e uma toneladas, recebendo o título de maior dos cetáceos dentados.
Feitas as devidas
correções, é chegada a hora de conhecermos o capitão do navio: Ahab. Um homem
envolto em uma aura de mistério, cujo rosto traz as marcas da amargura e do
sofrimento. Uma figura singular que carrega o orgulho ferido: na perna de pau
com osso de baleia e, mais profundamente, um vazio na alma que busca
irremediavelmente compensar nessa viagem, mal esse, para o qual, porém, o
leitor descobrirá que não há cura. E se você, leitor desavisado, deduziu que se
trata apenas de um livro em que os homens caçam as baleias e pronto. Ah, caro
leitor, temos muito que conversar.
Ahab traz no nome
(mais um bíblico empregado aqui) sua origem no livro de Reis: foi o sétimo rei
do Reino de Israel. Sua ambição, acompanhada por uma série de atrocidades e da
adoração a ídolos, trouxe prosperidade material, contudo foi como erva daninha
ao povo de Israel, desagradando a Javé. Com o passar do romance, sua tripulação
vai descobrir suas verdadeiras intenções: não se trata de caçar as baleias, mas
uma só baleia. O incauto capitão torna seus homens reféns de uma jornada que
conduz à perdição. Enlouquecido pelo desejo de vingança contra a criatura que
levou parte da sua perna e, com ela, todo o orgulho que possuía, ele delira
(não é mais um sonho) com a retomada triunfal de sua superioridade contra a
natureza.
Acompanha-o nesta
viagem o pragmático e experiente imediato Starbuck, um homem que vê com grandes
– mas discretas ressalvas – o plano pessoal de seu superior, intervindo sempre
da forma mais lúcida possível, entretanto jamais declinando de sua fidelidade
ao capitão, como a relação entre Dom Quixote e Sancho Pança vista por nós
anteriormente. O que diferencia o imediato de seu capitão é a prudência, como
podemos observar em sua frase que abre o nosso texto, que lhe traz o
equilíbrio, conceito inexistente em Ahab. Segundo Aristóteles “a virtude ocupa
a média entre duas extremidades lastimáveis, uma por excesso, a outra por falta”.
É justamente o excesso que vai levar Ahab à ruina e, como um buraco negro, vai
sugar todos e tudo à sua volta.
Bem diz certo
provérbio (cuja origem atribui-se à sabedoria japonesa) em uma de suas
possíveis traduções: “Antes de sair em busca de vingança, cave duas covas”. A
obsessão e o desejo de vingança incomensuráveis do capitão cegam-no
permanentemente, fazendo-o trilhar um caminho, que bem já pode perceber o
próprio leitor, não tem volta. Estão em jogo dois mundos: o externo,
representado pela natureza que o homem ousadamente desafia do alto de sua
soberba, um mundo belo, representado na superfície do mar (de forma
metafórica), mas selvagem e rude em suas profundezas, que carrega mistérios
ainda insondáveis aos olhos humanos e oferece o perigo a quem deseja subjugá-lo
(a superfície clara oculta as sombras da profundidade); e o interno,
representado pela falta de equilíbrio do homem, cuja ambição desmedida o conduz
à perda de tudo, inclusive seu bem mais precioso: a vida.
Ahab não mede
esforços e sacrifícios para encontrar a baleia para poder provar (a si próprio
ou a Deus) a superioridade humana, o poder do predador que se encontra no topo
da cadeia, um predador cuja imprudência transformará em presa fácil. Entre
tantas possibilidades interpretativas que esse clássico nos oferece
(filosófica, religiosa, psicológica) e não são poucas, como leitor podemos
observar a tragédia anunciada da luta pela vida em um mundo hostil como
consequência fatal do individuo que se considera absoluto.
Ahab busca sua glória
sem considerar jamais os riscos. Como diz o poeta Fernando Pessoa em seu poema
“Mar português”: “Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da
dor, Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu”. Há
quem diga que a “baleia branca” é o próprio castigo divino, outros que
representa a vingança e superioridade da natureza tão maltratada. Eu, caro
leitor, em minha humilde interpretação, penso, como os realistas, numa relação
de causa e efeito, na qual o homem sempre traça o seu próprio caminho. Somos
vítimas de nossas escolhas, mas como diz o sábio Raul Seixas na canção “Por
quem os sinos dobram”: “É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro”. Até a próxima.
MELVILLE, Herman. Moby Dick. São Paulo: Cosac & Naify, 2008.

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