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Eugène Delacroix: Hamlet and the corpse of Polonius |
Sejam todos muito bem-vindos, caro leitor e cara leitora, a mais uma escala de nossa viagem. A partir de agora, estamos deixando a Grécia Antiga para trás, com seus deuses e seus heróis, para partirmos rumo à Dinamarca. Vamos acessar a nossa lista de reprodução Sigamos ao som da opus 67 de Tchaikovsky (Hamlet: música para a tragédia de Shakespeare, 1888) deleitando-se com a riqueza que somente a arte pode nos propiciar: uma composição russa sobre uma obra inglesa que trata de um príncipe dinamarquês – isso sim, meus senhores e minhas senhoras, é a linguagem universal da arte.
Também vamos precisar regredir os ponteiros do relógio e voltar ao ano 1601. Estamos nos aproximando do castelo de Elsinore, ponto de partida e cenário para a maior e a mais famosa peça de William Shakespeare (anote o nome desse homem porque ele ainda vai dar muito que falar por aqui): “A tragédia de Hamlet, o príncipe da Dinamarca”. Conforme já foi dito antes, se temos o nome “tragédia”, temos a garantia do maior número de mortes possível até o final, a começar pelos protagonistas, pois esses dramaturgos não poupam ninguém – legado dos escritores gregos.
Na cena inicial temos o encontro do protagonista com um espectro (o fantasma do pai) que lhe faz uma terrível revelação: ele foi assassinado pelo irmão Cláudio, que tomou seu trono e, como se não bastasse tamanha afronta, desposou a viúva, ainda imersa no luto, a mãe de Hamlet. O que o pai deseja? Ser vingado, eis a única forma de reparar essa injustiça. Eis o conflito que será a mola propulsora até o fim da trama. Caso o astuto leitor tenha tido uma pequena impressão de já ter visto algo semelhante em um roteiro infantil, tenha a certeza de que não se enganou: este enredo, meu caro, mesmo que de forma bem simplista, serviu de base para a animação da Disney “O rei leão”.
Nosso amado príncipe Hamlet é cotado como um dos personagens mais inteligentes da literatura universal e, nesta obra, seu brilhante criador nos dá a chance de tomarmos mil caminhos temáticos para a discussão dessa emblemática obra. Entretanto, para não deixar a cabeça do leitor um tanto quanto perdida num turbilhão de assuntos, irei explorar apenas algumas dessas intrigantes trilhas. Nosso herói já se encontra com seu primeiro dilema: uma crise moral e ética. Será mesmo a vingança uma forma de justiça? Dúvida tão atual, trabalhada de forma constante, inclusive nos quadrinhos a respeito dos heróis urbanos, não é verdade? Trata-se apenas de uma das inúmeras reflexões que invadem nosso filosófico príncipe.
Como parte de sua vingança (ainda não tão clara para ele), Hamlet finge estar louco e, por um fatal engano, mata Polônio (conselheiro do rei) ao confundi-lo com o rei, oculto atrás de uma cortina (conforme eu vos disse – estamos em uma tragédia – comece a contagem porque não vai parar por aqui). Polônio é pai de Ofélia e Laerte. Agora, entra em cena o elemento romântico (estamos sempre às voltas com esse daí): Ofélia e Laerte nutrem uma paixão um pelo outro, mas, como já devíamos imaginar, dentro dos limites passionais, sempre existe um impedimento. Nesse caso específico, seu namoro é proibido por não pertencerem ao mesmo nível social – ele, um nobre, de sangue real; ela, uma filha de um serviçal. Por isso, seu pai não permitira.
Laerte jura vingança pela morte do pai, apoiado e incentivado (é claro) pelo monarca usurpador que deseja se livrar do sobrinho inconveniente sob a simples alegação de loucura. As terríveis circunstâncias em que se dá a trama acabam por levar Ofélia ao suicídio. Em meio a tantos acontecimentos, para a surpresa do leitor, não falta espaço para diversas reflexões, com destaque para a famosa, talvez a mais célebre citação literária: “Ser ou não ser: eis a questão” que cobra do ser humano uma posição diante da vida, traduzida de uma maneira mais crua, despida da solenidade shakespeariana: é viver ou morrer.
A grandeza de uma obra pode ser medida, de forma bem clara, por sua influência artística nas gerações futuras, sobrevivendo aos tempos. Afinal, é isso que diferencia um clássico das demais obras, parafraseando o fantástico Ítalo Calvino em sua obra “Por que ler os clássicos”: trata-se de um livro que não morre nunca, vive eternamente nas referências das obras posteriores. Assim é Hamlet: uma obra que inspirou várias versões de filmes, frutos de grandes produções, com atores de ponta como Laurence Olivier, Kenneth Branagh e Mel Gibson. Isso sem contar a vastidão de estudos e obras que exploraram o seu potencial filosófico e psicológico.
Cabe aqui citar livros também influenciados, desde os tempos remotos, como o romance “Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister” (1795), do alemão Goethe (autor cuja obra faz parte de nosso itinerário) até nossos tempos, com a obra “O eu aprendi com Hamlet” (2018) escrita pelo renomado palestrante Leandro Karnal que, entre seus ensinamentos, cita “somos todos contraditórios: heróis com traços de vilania”, reafirmando a natureza da dualidade humana: o bem e o mal estão em nós, como aquela bela fábula contada pelo sábio indígena da nação Cherokee sobre o lobo bom e o lobo mau.
Hamlet, como tenho defendido em minha coluna e, você, amigo leitor e companheiro de viagem, assim como o céu azul que nos cobre, é testemunha, é uma viagem ao interior do próprio homem, um passeio pela condição humana. Quando ele afirma que “pode-se pescar, com um verme que haja comido um rei, e comer o peixe que se alimentou desse verme”, nosso protagonista nos fala dos mistérios (citados na frase de abertura deste texto) que cercam esse mundo que dá tantas voltas. E, no meio desse mistério homérico que é a vida, fica a grande pergunta: quem somos nós, ou melhor ainda, quem nós estamos dispostos a ser?
Como se observa, ao longo da peça de Shakespeare, Hamlet caminha no meio das mais diversas dualidades humanas, pois, cá entre nós, não seria o homem um completo poço de contradições? O nobre protagonista, por meio de suas reflexões, nos adverte das peças que a mente costuma nos pregar. Segundo pode se ver pela trama, o pensamento percorre um longo caminho, que vai da prudência à covardia. Sem mais, termino aqui essa nossa viagem com mais um dos tantos questionamentos que o príncipe nos dirige: “Será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a Fortuna nos alveja ou insurgir-nos contra um mar de provocações?” A vida, caro leitor, aguarda pela tua resposta. Até a próxima.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2022.
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