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Crédito: PICRYL |
“Quão
perigosa é a aquisição do conhecimento e quão mais feliz é o homem que crê que
sua vila natal é o mundo, do que aquele que aspira tornar-se maior do que sua
natureza permite”.
Nessa parte
solitária do mundo, o capitão Robert Walton recolhe a bordo um homem cujo
semblante mostra-se marcado pelo tormento, que se diz chamar Viktor
Frankenstein. Sim, caro leitor, você já ouviu esse nome alguma vez e,
provavelmente, sabe de quem estou falando. Portanto, já imagina que hoje
mergulharemos nos porões obscuros da ambição e do desejo de glória, comuns a
algumas mentes obcecadas. Neste momento, doutor Frankenstein vai começar uma
narrativa que nos levará ao clima mais ameno da bela Suíça, mais propriamente à
cidade de Genebra, nos idos de 1818.
Antes, convém
lembrar ao leitor que esse livro surgiu de um sonho (cá entre nós: está mais
para um pesadelo) da jovem Mary Shelley, aos dezenove anos, após uma aposta
feita com ninguém menos que o famoso poeta Lord Byron sobre escrever uma
história de terror durante o verão chuvoso e de tempestades tenebrosas. Já
sabemos que os românticos (ah! sempre eles) aceitavam como inspiração as noites
sombrias e de ambiente tétrico como inspiração (chamados “locus horrendus”),
nascendo destas a prosa gótica que revelou talentos natos como Edgar Allan Poe
e o nosso Álvares de Azevedo. Acredite se quiser! Mary jamais imaginou que
estaria criando a primeira obra de ficção científica da história e que, anos
mais tarde, tenha inspirado, nada mais nada menos, que o mestre do terror: Stephen
King, entre tantos outros.
Porém, não nos
deixemos perder, dileto companheiro, do rumo que tracei para nós neste domingo.
Viktor, um jovem aristocrata, fascinado pelos estudos e experiências dos
mestres alquimistas, inicia o curso de ciências naturais na universidade. Desde
o princípio, demonstra interesse por procedimentos e experimentos os quais são
abomináveis a todos os mestres e alunos à sua volta. Com base nos estudos do
anatomista italiano Luigi Galvani e do médico suíço Paracelso, Viktor cogita
criar vida artificial por meio da eletricidade. Ele sabe o que significa tal
ideia perante a sociedade, por isso, ocultamente, rouba partes de cadáveres
para montar um “ser humano” que terá sua vida concebida por meio de uma
descarga elétrica sem precedentes.
Não preciso nem
dizer que tal experimento (transformado em obstinação) consumiu sua vida
familiar, social e até mesmo sua saúde. Trancado em uma propriedade isolada, em
perfeitas condições para seus propósitos, ele passa dois longos anos entregue
ao seu único objetivo: criar a vida por suas mãos. Seu esforço hercúleo traz resultados,
após certos insucessos, acontecimento comum quando se fala em ciência, pois
certas conquistas jamais deixam transparecer aos leigos o verdadeiro custo de
seu sucesso. Enfim, sua criatura ganha vida, mas o resultado da experiência não
é como fora idealizada. É neste momento, caro leitor, que o cientista louco cai
em si e nos remetemos à fala que abre nosso artigo de hoje. Doutor Frankenstein
ultrapassou todos os limites de sua natureza e, tardiamente, toma consciência
de que não deveria ter feito tal experiência.
A criatura acaba por fugir do laboratório. Seu
criador mantém seu pecado em sigilo mortal. Ela enfrenta a vida por aí. Possui
alguma inteligência: aprende a linguagem, adquire muitas noções de cultura,
contudo sente-se órfã, como aquela criança concebida que a mãe abandonou em um
canto qualquer, desamparada e desprotegida. Capaz de aprender tudo, inclusive a
sensibilidade e a gentileza, entre outros atributos; chegando até a salvar a
vida de uma criança. Infelizmente, isso tudo de nada adianta para alguém com
uma aparência como a dela. Jogada em uma sociedade que adora ver os rótulos e
as embalagens; ela, resultado do retalho de diversos corpos, toda costurada,
recebe o cruel estereótipo de monstro.
Percebendo que é única no mundo e que só poderá ser
verdadeiramente feliz se houver alguém de sua espécie (outro como ela), retorna
ao seu criador, até então aliviado por se ver livre da criação pela qual tanto
ansiou. Frankenstein ainda traz consigo o remorso, a culpa e o segredo como
tortura, pensando consigo: “Haveria alguém além de mim, o criador, capaz de
acreditar, a menos que convencido pelos sentidos, na existência do monumento
vivo à presunção e à ignorância imprudente que lancei ao mundo”? Eis o susto
que recebe ao ver sua criatura de volta, fazendo-lhe um pedido em forma de
exigência: a criação de uma parceira para ele, para depois poder sumir da vista
de todos, até de seu “pai”. Entretanto, caso ele se recuse, sofrerá tormentos
insuportáveis.
O doutor acaba concordando, tendo até um momento de
compaixão pelo destino cruel da pobre criatura, destino esse pelo qual se sente
culpado. É como se estivesse pagando uma alta dívida para com ela. No entanto,
mais tarde, após ter começado a criação da futura companheira, fica pensando
nas consequências que traria para o mundo, caso eles viessem a gerar
descendentes e, por fim, desiste do intento, quebrando sua promessa. Sua
criação o faz pagar caro por isso, assassinando as três pessoas mais queridas
para ele: o irmão, a noiva e o amigo; assumindo a vingança como a compensação
pela falta de afeto e proteção. A partir daí, começa uma perseguição durante a
qual ambos alternam-se no papel de caça e caçador.
Vemos em Viktor a mesma obstinação sem medidas que
vemos no capitão Ahab: em desconhecer os próprios limites humanos, desafiando
as leis da natureza. Na verdade, caro leitor, o que vemos aqui é um pensamento
comum presente na Revolução Industrial, em seu primeiro estágio: a tecnologia e
a ciência exerceriam, enfim, o poder sobre a natureza. Vemos uma ciência que
acaba por tomar o lugar de Deus no coração do homem, mas que, naturalmente,
acaba por falhar. Cabe lembrar que o subtítulo da obra é “Prometeu moderno”,
referindo-se ao mito grego em que Prometeu rouba o fogo dos deuses para dar aos
homens como poder e depois é severamente castigado. Eis o que também se passa
com Viktor.
Destaco aqui que o título da obra leva o nome do
cientista e não da criatura que, de tanto despersonalizada, nem nome possui, o
que leva ao nível da falta e afeto e identidade que emana de seu criador. Em
muitas adaptações para filmes, desde um dos primeiros, como “Frankenstein” de
1931, do diretor James Whale, no estilo expressionista, até referências em
alguns mais recentes como “Van Helsing” (2004), chocam-se as ideias de monstro
e de vítima, lembrando que, aos olhos de Mary Shelley, o doutor era o
verdadeiro monstro. Em um mundo cada vez mais avançado cientificamente, com
temas como clonagem e outros, devemos nos lembrar que até mesmo a ciência tem
seus limites e, sem ética alguma, pode se equiparar a certos fanatismos
religiosos.
Viktor quis ir além dos mistérios da criação,
descobrindo tarde demais que para alguns caminhos não há volta, que todos nós
podemos escolher o que vamos plantar, mas a colheita já está decidida. O filme
“Edward mãos de tesoura”, feito em 1990 pelo original Tim Burton e o
samba-enredo da Beija-Flor de 2018 (em homenagem aos duzentos anos do livro)
“Monstro é aquele que não sabe amar”, entre tantas outras releituras dessa rica
obra, querem nos mostrar que o olhar indiferente e excludente de nossa
sociedade é uma enorme fábrica de monstros. Até a próxima!
SHELLEY, Mary. Frankenstein. Rio de Janeiro: Excelsior, 2019.
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