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terça-feira, 21 de outubro de 2025

A ATITUDE INCONSEQUENTE DO HOMEM QUE BRINCA DE DEUS

 

Crédito: PICRYL

“Quão perigosa é a aquisição do conhecimento e quão mais feliz é o homem que crê que sua vila natal é o mundo, do que aquele que aspira tornar-se maior do que sua natureza permite”.

                 Bem-vindos, caro leitor e cara leitora, fiéis companheiros de viagem, a esse fantástico universo chamado Literatura. Seguimos nosso itinerário pelas páginas dos livros que nos conduzem, pouco a pouco, em direção às entranhas do homem. Terminamos nossa viagem passada em um navio, numa luta desigual contra a força da natureza e, novamente, por outro navio, começamos mais uma vez, só que agora nas geladas águas do Ártico. Caso o leitor me pergunte o que estamos fazendo aqui, eu respondo: viemos encontrar o fim da história que nos levará ao seu início. É isso mesmo? Sim, meu amigo. A literatura tem dessas coisas. Agora vamos acionar a nossa eclética “playlist”: sigamos então ao som da cantata “Carmina Burana”, de Carl Orff, a começar pela faixa “Ó Fortuna”, totalmente apropriada ao drama que se abaterá sobre nós a partir de agora.

                Nessa parte solitária do mundo, o capitão Robert Walton recolhe a bordo um homem cujo semblante mostra-se marcado pelo tormento, que se diz chamar Viktor Frankenstein. Sim, caro leitor, você já ouviu esse nome alguma vez e, provavelmente, sabe de quem estou falando. Portanto, já imagina que hoje mergulharemos nos porões obscuros da ambição e do desejo de glória, comuns a algumas mentes obcecadas. Neste momento, doutor Frankenstein vai começar uma narrativa que nos levará ao clima mais ameno da bela Suíça, mais propriamente à cidade de Genebra, nos idos de 1818.

                Antes, convém lembrar ao leitor que esse livro surgiu de um sonho (cá entre nós: está mais para um pesadelo) da jovem Mary Shelley, aos dezenove anos, após uma aposta feita com ninguém menos que o famoso poeta Lord Byron sobre escrever uma história de terror durante o verão chuvoso e de tempestades tenebrosas. Já sabemos que os românticos (ah! sempre eles) aceitavam como inspiração as noites sombrias e de ambiente tétrico como inspiração (chamados “locus horrendus”), nascendo destas a prosa gótica que revelou talentos natos como Edgar Allan Poe e o nosso Álvares de Azevedo. Acredite se quiser! Mary jamais imaginou que estaria criando a primeira obra de ficção científica da história e que, anos mais tarde, tenha inspirado, nada mais nada menos, que o mestre do terror: Stephen King, entre tantos outros.

                Porém, não nos deixemos perder, dileto companheiro, do rumo que tracei para nós neste domingo. Viktor, um jovem aristocrata, fascinado pelos estudos e experiências dos mestres alquimistas, inicia o curso de ciências naturais na universidade. Desde o princípio, demonstra interesse por procedimentos e experimentos os quais são abomináveis a todos os mestres e alunos à sua volta. Com base nos estudos do anatomista italiano Luigi Galvani e do médico suíço Paracelso, Viktor cogita criar vida artificial por meio da eletricidade. Ele sabe o que significa tal ideia perante a sociedade, por isso, ocultamente, rouba partes de cadáveres para montar um “ser humano” que terá sua vida concebida por meio de uma descarga elétrica sem precedentes.

                Não preciso nem dizer que tal experimento (transformado em obstinação) consumiu sua vida familiar, social e até mesmo sua saúde. Trancado em uma propriedade isolada, em perfeitas condições para seus propósitos, ele passa dois longos anos entregue ao seu único objetivo: criar a vida por suas mãos. Seu esforço hercúleo traz resultados, após certos insucessos, acontecimento comum quando se fala em ciência, pois certas conquistas jamais deixam transparecer aos leigos o verdadeiro custo de seu sucesso. Enfim, sua criatura ganha vida, mas o resultado da experiência não é como fora idealizada. É neste momento, caro leitor, que o cientista louco cai em si e nos remetemos à fala que abre nosso artigo de hoje. Doutor Frankenstein ultrapassou todos os limites de sua natureza e, tardiamente, toma consciência de que não deveria ter feito tal experiência.

A criatura acaba por fugir do laboratório. Seu criador mantém seu pecado em sigilo mortal. Ela enfrenta a vida por aí. Possui alguma inteligência: aprende a linguagem, adquire muitas noções de cultura, contudo sente-se órfã, como aquela criança concebida que a mãe abandonou em um canto qualquer, desamparada e desprotegida. Capaz de aprender tudo, inclusive a sensibilidade e a gentileza, entre outros atributos; chegando até a salvar a vida de uma criança. Infelizmente, isso tudo de nada adianta para alguém com uma aparência como a dela. Jogada em uma sociedade que adora ver os rótulos e as embalagens; ela, resultado do retalho de diversos corpos, toda costurada, recebe o cruel estereótipo de monstro.

Percebendo que é única no mundo e que só poderá ser verdadeiramente feliz se houver alguém de sua espécie (outro como ela), retorna ao seu criador, até então aliviado por se ver livre da criação pela qual tanto ansiou. Frankenstein ainda traz consigo o remorso, a culpa e o segredo como tortura, pensando consigo: “Haveria alguém além de mim, o criador, capaz de acreditar, a menos que convencido pelos sentidos, na existência do monumento vivo à presunção e à ignorância imprudente que lancei ao mundo”? Eis o susto que recebe ao ver sua criatura de volta, fazendo-lhe um pedido em forma de exigência: a criação de uma parceira para ele, para depois poder sumir da vista de todos, até de seu “pai”. Entretanto, caso ele se recuse, sofrerá tormentos insuportáveis.

O doutor acaba concordando, tendo até um momento de compaixão pelo destino cruel da pobre criatura, destino esse pelo qual se sente culpado. É como se estivesse pagando uma alta dívida para com ela. No entanto, mais tarde, após ter começado a criação da futura companheira, fica pensando nas consequências que traria para o mundo, caso eles viessem a gerar descendentes e, por fim, desiste do intento, quebrando sua promessa. Sua criação o faz pagar caro por isso, assassinando as três pessoas mais queridas para ele: o irmão, a noiva e o amigo; assumindo a vingança como a compensação pela falta de afeto e proteção. A partir daí, começa uma perseguição durante a qual ambos alternam-se no papel de caça e caçador.

Vemos em Viktor a mesma obstinação sem medidas que vemos no capitão Ahab: em desconhecer os próprios limites humanos, desafiando as leis da natureza. Na verdade, caro leitor, o que vemos aqui é um pensamento comum presente na Revolução Industrial, em seu primeiro estágio: a tecnologia e a ciência exerceriam, enfim, o poder sobre a natureza. Vemos uma ciência que acaba por tomar o lugar de Deus no coração do homem, mas que, naturalmente, acaba por falhar. Cabe lembrar que o subtítulo da obra é “Prometeu moderno”, referindo-se ao mito grego em que Prometeu rouba o fogo dos deuses para dar aos homens como poder e depois é severamente castigado. Eis o que também se passa com Viktor.

Destaco aqui que o título da obra leva o nome do cientista e não da criatura que, de tanto despersonalizada, nem nome possui, o que leva ao nível da falta e afeto e identidade que emana de seu criador. Em muitas adaptações para filmes, desde um dos primeiros, como “Frankenstein” de 1931, do diretor James Whale, no estilo expressionista, até referências em alguns mais recentes como “Van Helsing” (2004), chocam-se as ideias de monstro e de vítima, lembrando que, aos olhos de Mary Shelley, o doutor era o verdadeiro monstro. Em um mundo cada vez mais avançado cientificamente, com temas como clonagem e outros, devemos nos lembrar que até mesmo a ciência tem seus limites e, sem ética alguma, pode se equiparar a certos fanatismos religiosos.

Viktor quis ir além dos mistérios da criação, descobrindo tarde demais que para alguns caminhos não há volta, que todos nós podemos escolher o que vamos plantar, mas a colheita já está decidida. O filme “Edward mãos de tesoura”, feito em 1990 pelo original Tim Burton e o samba-enredo da Beija-Flor de 2018 (em homenagem aos duzentos anos do livro) “Monstro é aquele que não sabe amar”, entre tantas outras releituras dessa rica obra, querem nos mostrar que o olhar indiferente e excludente de nossa sociedade é uma enorme fábrica de monstros. Até a próxima!

SHELLEY, Mary. Frankenstein. Rio de Janeiro: Excelsior, 2019.     

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