![]() |
Domenico Di Michelino "Dante e os três reinos" https://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/ |
Bem-vindo, caro leitor e cara leitora, meus grandes companheiros de jornada. É com essa célebre frase que retomamos nossa viagem literária, lembrando que, na semana passada estávamos nas terras áridas em algum canto da Espanha. Apertem os cintos novamente e aproveitemos então a pouca distância que nos resta para que possamos enfim chegar ao nosso próximo destino: a cidade de Florença, na bela Itália. Acho bom advertir a algum leitor desavisado que se encontre entre nós que poupe de imediato o seu entusiasmo se achar que vamos a algum cenário bucólico ou até mesmo romântico o qual essa cidade possa facilmente inspirar e voltemos à nossa frase inicial que se encontra escrita no portão do inferno. Isso mesmo, meu caro, você não entendeu errado. É justamente o ponto de partida de nossa viagem, com direito a guia e tudo o mais que o pacote dessa semana tem a nos oferecer.
Estamos acompanhados do protagonista e escritor Dante Alighieri e acabamos de adentrar às páginas de “A Divina Comédia”, o que nos obrigará a voltar ainda mais no tempo, até os idos do ano de 1321, em que se deu a conclusão da obra e, simultaneamente, da morte de seu criador. Aqui vai mais um adendo antes do início: embora o título use a palavra comédia, nada tem a ver com algo cômico, engraçado, que trata do significado atual da palavra; mas porque ao contrário das tragédias (aquelas obras dramáticas em que “desgraça pouca é besteira”, como diziam os antigos) o termo “comédia” servia, nessa época para identificar as obras que possuíam um final feliz (olha aqui um “spoiler”). Essa revelação talvez possa imbuir os mais inocentes com algumas esperanças em um passeio que tem como ponto de partida um local que nada tem de agradável. Dizem por aí, inclusive, que o talentoso poeta levou quatorze (ou catorze se preferirem) anos para terminá-la. Pense bem. Isso acaba sendo algo inimaginável nos dias de hoje. Mas, continuando nosso passeio, temos a presença, nada mais nada menos, de um grande poeta clássico: Virgílio (admirado por Dante), um escritor romano que, entre outras obras, escreveu “Eneida”, poema épico que alcançou grande destaque na literatura universal. Esse homem, escolhido por Dante, vai guiar a todos nós até Beatrice, musa eterna do autor florentino.
Como não poderia faltar, não podemos nos esquecer de acionar a nossa tradicional lista de reprodução para a viagem. Dessa vez, recomendo a “Sinfonia Dante”, concluída pelo compositor Franz Liszt, cuja estreia deu-se em 1857 com o próprio compositor como regente e deu o que falar na época. O compositor acabara de ler o livro e resolveu transformar a obra em música. Se o nobre leitor não está habituado à música erudita, peço que lhe dê ao menos uma chance, pois durante a audição dessa obra magnífica poderá perceber como Liszt consegue descrever por meio das notas musicais o clima denso e tenso proposto no livro.
Mas voltemos à obra: com o poeta latino à frente, abrindo passagem, vamos percorrendo a terra da expiação e do fogo eterno; ele, que no caso, simboliza a razão, conduz o poeta mostrando os nove níveis sobre os quais está composto o plano infernal. É uma obra toda cheia de simbolismos e que representa o pensamento e a cultura da Idade Média. Assim sendo, o inferno fica nos subterrâneos (sempre para baixo), forma ainda frequente de pensamento popular como influência dessa obra. Ao passo que se caminha, encontram-se personagens famosos da história, associados aos mais severos malefícios referentes aos sete pecados capitais. Inclusive essa parte foi retratada com maior ênfase no best-seller “Inferno” (2013) de autoria de Dan Brown que como tema o mapa do inferno da obra e faz um verdadeiro passeio artístico pela cidade de Dante, ambientado em um clima de ação e suspense, tornando-se filme mais tarde.
É um livro que fala de tudo um pouco (uma verdadeira enciclopédia) como pode ser notado à medida que se avança. Entre suas diversas atribuições, não se deixa escapar o tom moralizante vinculado à Igreja, mas por curiosidade, boa parte das autoridades encontradas por Dante lá são papas dessa mesma Igreja (você já viu que não escapa ninguém). Até porque nosso protagonista representa o homem comum, que necessita seguir o caminho do bem e da ética, porém, como qualquer um nesse mundo, não é passível de dúvidas e se vê frequentemente tentado a fazer o contrário.
As imagens vistas nessa primeira parte da viagem assumem um tom que aterroriza e choca. O poeta não poupa descrições sobre as expiações. Daí nasceu a palavra “dantesco” com o significado de horror de extrema grandiosidade como o gênio Castro Alves (o poeta dos escravos) aplicou com maestria em seu poema “Navio negreiro” quando diz: “Era um sonho dantesco... o tombadilho” ao escrever o espetáculo de horrores que era o tráfico de escravos. Passa-se agora para o segundo plano: o purgatório. Aqui as almas ainda tentam fazer algo para mudar sua condição de vida, buscando corrigir seus erros e desprender-se dos maus hábitos (pecados). É a famosa “segunda chance” que aos habitantes do plano anterior não foi permitida.
Chegando enfim à terceira etapa de nossa viagem, encontramo-la: a doce Beatrice. Despedimo-nos de Virgílio, nosso poeta guia, para, agora com ela, seguirmos a caminhada. Ela é o símbolo da fé, por isso foi elevada ao status de santa por seu admirador terreno, portanto a alma ideal para conduzir nosso viajante em direção ao paraíso.
Sabe-se que Beatrice era a musa do poeta. Sim, caro leitor, uma mulher de carne e osso e, assim como a enigmática Monalisa do quadro de Da Vinci, suscita as mais variadas cogitações acerca de sua verdadeira identidade, contudo ninguém tem certeza suficiente para bater o martelo sobre a questão. Inclusive, em relação a essa paixão, o poeta Olavo Bilac fez um belo soneto que possui, como título, o primeiro verso da Divina comédia: “Nel mezzo del camin” (1888), tendo como tema a tristeza do poeta pela repentina partida da amada e que termina da seguinte forma: “E eu, solitário, volto a face, e tremo, / Vendo o teu vulto que desaparece / Na extrema curva do caminho extremo”, descrevendo a morte da amada de forma metafórica
Não podia deixar de dizer que esse poema épico... Ah! Desculpe, caro leitor, mas esqueci de avisar que o livro todo é feito em forma de poema e, como se não bastasse, simétrico, ou seja, todos os versos têm o mesmo número de sílabas poéticas e esquemas fixos de rimas (talvez essa última informação justifique os quatorze anos de construção que levou para ficar pronto). Como ia dizendo, por mais absurdo que pareça tal viagem, desde o começo até o fim, (aqui cabe ressaltar que se trata de uma visão católica da época e, portanto, muito diferente de outras religiões e olha que nem toquei no ponto da percepção dos ateus sobre isso tudo), Dante trata da condição humana, sobre cada uma de nossas escolhas. Por mais que alguns possam achar uma obra impregnada de teologia e de dogmas, ela acaba chegando ao mesmo ponto: o que o homem faz de sua vida.
Para o grande poeta continuamos a escolher nosso próprio caminho. Esse livro é uma peregrinação da alma, do homem em busca de sua conversão, com o aviso de que necessitamos tomar uma atitude e saber fazer nossas escolhas, mas lembrando que a omissão também é um pecado (não escolher nada não deixa de ser uma escolha), como o poeta nos diz em um trecho: “No inferno, os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise.” Dante vem nos chamar a atenção de que não adianta ficar procurando um culpado externo para tudo, como nos diz Raul Seixas, na canção “Por quem, os sinos dobram”: “É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro”, pois vivemos em tempos que as pessoas sempre buscam desculpas que os isentem da responsabilidade, contudo ainda somos nós os responsáveis por nossas vitórias e derrotas. Vivemos em um mundo repleto das mais diversas tentações que, ampliadas pelas redes sociais, buscam oferecer o caminho mais fácil para se alcançar o topo do monte. Que cada um de nós possa escolher com sabedoria a própria jornada, sabendo que são nossos passos que constroem a estrada do nosso destino. Muito obrigado pela companhia. Até a próxima viagem.