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segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A JORNADA DE UM HOMEM É FEITA DE SUAS ESCOLHAS

Domenico Di Michelino "Dante e os três reinos"
https://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/


 “Vós que entrais, abandonai toda a esperança”

Bem-vindo, caro leitor e cara leitora, meus grandes companheiros de jornada. É com essa célebre frase que retomamos nossa viagem literária, lembrando que, na semana passada estávamos nas terras áridas em algum canto da Espanha. Apertem os cintos novamente e aproveitemos então a pouca distância que nos resta para que possamos enfim chegar ao nosso próximo destino: a cidade de Florença, na bela Itália. Acho bom advertir a algum leitor desavisado que se encontre entre nós que poupe de imediato o seu entusiasmo se achar que vamos a algum cenário bucólico ou até mesmo romântico o qual essa cidade possa facilmente inspirar e voltemos à nossa frase inicial que se encontra escrita no portão do inferno. Isso mesmo, meu caro, você não entendeu errado. É justamente o ponto de partida de nossa viagem, com direito a guia e tudo o mais que o pacote dessa semana tem a nos oferecer. 

Estamos acompanhados do protagonista e escritor Dante Alighieri e acabamos de adentrar às páginas de “A Divina Comédia”, o que nos obrigará a voltar ainda mais no tempo, até os idos do ano de 1321, em que se deu a conclusão da obra e, simultaneamente, da morte de seu criador. Aqui vai mais um adendo antes do início: embora o título use a palavra comédia, nada tem a ver com algo cômico, engraçado, que trata do significado atual da palavra; mas porque ao contrário das tragédias (aquelas obras dramáticas em que “desgraça pouca é besteira”, como diziam os antigos) o termo “comédia” servia, nessa época para identificar as obras que possuíam um final feliz (olha aqui um “spoiler”). Essa revelação talvez possa imbuir os mais inocentes com algumas esperanças em um passeio que tem como ponto de partida um local que nada tem de agradável. Dizem por aí, inclusive, que o talentoso poeta levou quatorze (ou catorze se preferirem) anos para terminá-la. Pense bem. Isso acaba sendo algo inimaginável nos dias de hoje. Mas, continuando nosso passeio, temos a presença, nada mais nada menos, de um grande poeta clássico: Virgílio (admirado por Dante), um escritor romano que, entre outras obras, escreveu “Eneida”, poema épico que alcançou grande destaque na literatura universal. Esse homem, escolhido por Dante, vai guiar a todos nós até Beatrice, musa eterna do autor florentino. 

Como não poderia faltar, não podemos nos esquecer de acionar a nossa tradicional lista de reprodução para a viagem. Dessa vez, recomendo a “Sinfonia Dante”, concluída pelo compositor Franz Liszt, cuja estreia deu-se em 1857 com o próprio compositor como regente e deu o que falar na época. O compositor acabara de ler o livro e resolveu transformar a obra em música. Se o nobre leitor não está habituado à música erudita, peço que lhe dê ao menos uma chance, pois durante a audição dessa obra magnífica poderá perceber como Liszt consegue descrever por meio das notas musicais o clima denso e tenso proposto no livro.  

Mas voltemos à obra: com o poeta latino à frente, abrindo passagem, vamos percorrendo a terra da expiação e do fogo eterno; ele, que no caso, simboliza a razão, conduz o poeta mostrando os nove níveis sobre os quais está composto o plano infernal. É uma obra toda cheia de simbolismos e que representa o pensamento e a cultura da Idade Média. Assim sendo, o inferno fica nos subterrâneos (sempre para baixo), forma ainda frequente de pensamento popular como influência dessa obra. Ao passo que se caminha, encontram-se personagens famosos da história, associados aos mais severos malefícios referentes aos sete pecados capitais. Inclusive essa parte foi retratada com maior ênfase no best-seller “Inferno” (2013) de autoria de Dan Brown que como tema o mapa do inferno da obra e faz um verdadeiro passeio artístico pela cidade de Dante, ambientado em um clima de ação e suspense, tornando-se filme mais tarde.

É um livro que fala de tudo um pouco (uma verdadeira enciclopédia) como pode ser notado à medida que se avança. Entre suas diversas atribuições, não se deixa escapar o tom moralizante vinculado à Igreja, mas por curiosidade, boa parte das autoridades encontradas por Dante lá são papas dessa mesma Igreja (você já viu que não escapa ninguém). Até porque nosso protagonista representa o homem comum, que necessita seguir o caminho do bem e da ética, porém, como qualquer um nesse mundo, não é passível de dúvidas e se vê frequentemente tentado a fazer o contrário. 

As imagens vistas nessa primeira parte da viagem assumem um tom que aterroriza e choca. O poeta não poupa descrições sobre as expiações. Daí nasceu a palavra “dantesco” com o significado de horror de extrema grandiosidade como o gênio Castro Alves (o poeta dos escravos) aplicou com maestria em seu poema “Navio negreiro” quando diz: “Era um sonho dantesco... o tombadilho” ao escrever o espetáculo de horrores que era o tráfico de escravos. Passa-se agora para o segundo plano: o purgatório. Aqui as almas ainda tentam fazer algo para mudar sua condição de vida, buscando corrigir seus erros e desprender-se dos maus hábitos (pecados). É a famosa “segunda chance” que aos habitantes do plano anterior não foi permitida.

Chegando enfim à terceira etapa de nossa viagem, encontramo-la: a doce Beatrice. Despedimo-nos de Virgílio, nosso poeta guia, para, agora com ela, seguirmos a caminhada. Ela é o símbolo da fé, por isso foi elevada ao status de santa por seu admirador terreno, portanto a alma ideal para conduzir nosso viajante em direção ao paraíso.

Sabe-se que Beatrice era a musa do poeta. Sim, caro leitor, uma mulher de carne e osso e, assim como a enigmática Monalisa do quadro de Da Vinci, suscita as mais variadas cogitações acerca de sua verdadeira identidade, contudo ninguém tem certeza suficiente para bater o martelo sobre a questão. Inclusive, em relação a essa paixão, o poeta Olavo Bilac fez um belo soneto que possui, como título, o primeiro verso da Divina comédia: “Nel mezzo del camin” (1888), tendo como tema a tristeza do poeta pela repentina partida da amada e que termina da seguinte forma: “E eu, solitário, volto a face, e tremo, / Vendo o teu vulto que desaparece / Na extrema curva do caminho extremo”, descrevendo a morte da amada de forma metafórica

Não podia deixar de dizer que esse poema épico... Ah! Desculpe, caro leitor, mas esqueci de avisar que o livro todo é feito em forma de poema e, como se não bastasse, simétrico, ou seja, todos os versos têm o mesmo número de sílabas poéticas e esquemas fixos de rimas (talvez essa última informação justifique os quatorze anos de construção que levou para ficar pronto). Como ia dizendo, por mais absurdo que pareça tal viagem, desde o começo até o fim, (aqui cabe ressaltar que se trata de uma visão católica da época e, portanto, muito diferente de outras religiões e olha que nem toquei no ponto da percepção dos ateus sobre isso tudo), Dante trata da condição humana, sobre cada uma de nossas escolhas. Por mais que alguns possam achar uma obra impregnada de teologia e de dogmas, ela acaba chegando ao mesmo ponto: o que o homem faz de sua vida.

Para o grande poeta continuamos a escolher nosso próprio caminho. Esse livro é uma peregrinação da alma, do homem em busca de sua conversão, com o aviso de que necessitamos tomar uma atitude e saber fazer nossas escolhas, mas lembrando que a omissão também é um pecado (não escolher nada não deixa de ser uma escolha), como o poeta nos diz em um trecho: “No inferno, os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise.” Dante vem nos chamar a atenção de que não adianta ficar procurando um culpado externo para tudo, como nos diz Raul Seixas, na canção “Por quem, os sinos dobram”: “É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro”, pois vivemos em tempos que as pessoas sempre buscam desculpas que os isentem da responsabilidade, contudo ainda somos nós os responsáveis por nossas vitórias e derrotas. Vivemos em um mundo repleto das mais diversas tentações que, ampliadas pelas redes sociais, buscam oferecer o caminho mais fácil para se alcançar o topo do monte. Que cada um de nós possa escolher com sabedoria a própria jornada, sabendo que são nossos passos que constroem a estrada do nosso destino. Muito obrigado pela companhia. Até a próxima viagem.

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. São Paulo: Principis, 2021.

sábado, 20 de setembro de 2025

MEMORIAS DE MARTHA (LISTA FUVEST)


 

Caros vestibulandos e leitores, hoje seguimos com nossa breve análise dos livros para o vestibular da FUVEST. Agora é a vez do livro “Memórias de Martha”, da escritora Júlia Lopes de Almeida, obra originalmente publicada em capítulos, como os folhetins românticos entre os anos de 1888 e 1889. Ao longo do tempo, foram lançadas três edições que possuem algumas pequenas diferenças. O romance, lançado em 1888, sempre foi sinônimo de dificuldade para ser obtido, apesar de sua importância histórica como o primeiro enredo sobre um cortiço.

                Agora, como já é de praxe, vou apresentar em poucas linhas sua autora: Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida foi escritora, cronista e teatróloga. Escreveu literatura infantil, romances, crônicas, peças de teatro e, desde o início, suas obras já demonstravam uma mulher à frente de seu tempo. Júlia fazia parte do grupo que planejou a criação da Academia Brasileira de Letras, contudo ficou de fora da primeira lista de “imortais” pelo simples fato de não ser homem. Em seu lugar foi empossado o marido, o escritor português Filinto de Almeida.

Mas, antes que alguém pergunte, vamos para a história: tudo começa por uma mulher já adulta, que começa a contar sua vida desde quando criança. Martha, a protagonista, perde seu pai, provedor da família. Com isso, a mãe, que também se chama Martha, não vê outra solução a não ser trabalhar como engomadeira para poder sustentar as duas. Elas, que tinham uma vida até razoável, com certo conforto, agora, com a pouca renda originada do serviço da mãe, veem-se obrigadas a morar em um cortiço em São Cristóvão, lembrando que os cortiços eram a grande sensação de moradia popular na época. A filha sente tremenda repulsa pelo lugar: úmido, constante mau cheiro devido a se localizar próximo a um matadouro, sempre sobrevoado por diversos urubus. Como se não bastasse, o quarto em que vivem é descrito como estreito, escuro e abafado, como de deveriam ser todos os outros, pois os cortiços eram quase que a última alternativa em questões de moradia devido a precárias estruturas e a localizações desfavoráveis.

A mãe, agora também costureira, trabalha arduamente para poder prover o sustento do lar e procura propiciar à filha a oportunidade de estudar, o que acaba se tornando o grande objetivo de Martha. Tudo o que ela mais quer é sair do cortiço, pois aquele ambiente cada vez mais a faz sentir a humilhação de ser pobre. Isso fica mais evidente ainda quando ela começa a comparar sua vida com as demais meninas que frequentam a escola com ela. Tal sonho começa a se tornar possível desde o momento em que Martha entra na escola. Lá ela conhece D. Aninha, uma professora que passa a incentivá-la para que estude e para que tente a carreira no magistério. Depois de algum tempo, Martha se torna adjunta e passa a receber um salário. Sua situação começa enfim a mudar porque agora ela já consegue alugar uma pequena casa e, finalmente, deixar de uma vez por todas o cortiço, o que pode ser encarado como uma grande vitória em sua vida.

Entretanto, nada disso vem fácil assim para ela, tudo é fruto de um esforço absurdo, pois a vida começa a mostrar as barreiras que toda mulher enfrenta em sua busca por independência. Ela chega a ser diagnosticada como histérica e o ouve do médico que deveria procurar por casamento, como se esse fosse o seu problema: não ter um homem ao seu lado. Procurando ajudar a moça para aliviar a tensão e a pressão social, D. Aninha a convida para passar as férias com ela em um lugar distante dali. Nesse local, ela é apresentada para Luís, primo de sua professora. Ela acaba se apaixonando por ele, todavia eles são muito diferentes, pois enquanto ele parece ser um rapaz cheio de vida, alegre e extrovertido, ela anda sempre triste, séria demais e muito tímida. Ao não ser correspondida, Martha acredita que a causa seja por ela ser feia e pobre. Aqui notamos que uma espécie de complexo de inferioridade a persegue.  A situação leva a moça a questionar se realmente o amor verdadeiro existe.  

Enquanto estava de férias, ela escrevia frequentemente cartas para a sua mãe. Nelas, demonstrava toda a sua paixão por Luís. A mãe passou a mostrar as cartas para um cliente chamado Miranda, que há um tempo estava viúvo e desde então vivia sozinho com os filhos. Após tantas leituras e comentários da mãe, Miranda acaba se apaixonando por Martha por causa de seus escritos, pois nunca tivera qualquer contato com ela. Ela finalmente participa de um concurso para professora e acaba sendo aprovada. Miranda então pede sua mão em casamento. Num primeiro instante, ela não aceita porque não sente nada por ele.

Martha, agora mais do que nunca, tem a possibilidade de ser independente, porque já possuía um emprego e, portanto, não precisava se casar por conveniência. Porém a mãe insiste com ela sobre a frágil reputação das mulheres que permanecem solteiras depois de certa idade. Depois de pensar e ouvir a mãe, ela decide aceitar, mas não deixa de lembrar seus sonhos e lamentar seu destino.  Depois de oito dias do casamento, a mãe vem a falecer. Ao que tudo indica, estava adiando o fim até que tivesse certeza que sua filha não ficaria desamparada e que, enfim, sua missão fora cumprida. Agora podia descansar em paz após essa luta de tantos anos. Martha termina sua narrativa dando-se por realizada com o espaço que conquistou.

Quanto aos elementos, o foco narrativo conserva-se na primeira pessoa, com a própria Martha sendo a narradora e protagonista. O leitor acompanha suas lembranças, iniciando pela infância, passando pela juventude difícil e chegando enfim à vida adulta. Tal história é contada por meio de suas percepções e reflexões sobre o ambiente à sua volta, permitindo ao leitor ver de perto as experiências e emoções de Martha. Ao explorar a subjetividade da personagem, o leitor pode ter uma visão íntima da realidade social da época, o que vem a reforçar a crítica social, pois, por meio de suas experiências, tem-se acesso às dificuldades enfrentadas pelas mulheres de sua época. O retrato dela é o retrato da mulher no final do século XIX.

O tempo da narrativa é marcado pela alternância: o momento presente em que a protagonista relembra sua história e a infância e juventude, permitindo que se acompanhem suas recordações, mesclando suas impressões do passado com reflexões de sua trajetória, pois se trata de uma mulher madura que interpreta os eventos do passado com a experiência do presente, podendo compreender as marcas que o tempo deixou. O espaço central da narrativa é o cortiço no Rio de Janeiro, onde Martha e sua mãe vivem em condições precárias. Outros espaços são citados, porém com menor importância, na maioria das vezes, servindo como contraste com a realidade do cortiço, símbolo da miséria e desigualdade, revelando a crítica social da obra.

A obra apresenta-se por meio de diversas transgressões: autoria de uma mulher, a não aceitação do casamento por Martha, o seu atributo intelectual e não físico como era comum nas protagonistas, demonstrando a profundidade tão ignorada das mulheres. Destaque para os estudos e o trabalho como desejos de uma mulher e trilhas para sua satisfação, valorizando  

a posição de independência e enfatizando a capacidade da mulher para vencer desafios. Além disso, há um certo pioneirismo em focar a educação como uma forma de ascensão social.  Martha busca o casamento como ato de amor e não como garantia econômica. Mas seu caminho não será nada fácil diante das hostilidades que recebe de uma sociedade patriarcal.

Na obra, podem-se observar elementos do Realismo, como descrições detalhadas de cenas e espaços do cotidiano, também elementos do Naturalismo como a questão do Determinismo que, acaba sendo refutado, em parte, pelo exemplo da protagonista. Apesar de acabar cedendo a uma vontade da mãe e acabar se casando em nome da estabilidade, da moral e dos bons costumes, Martha termina o romance sentindo-se uma vencedora.

                Vou ficando por aqui, caro vestibulando. Espero ter sido útil. Até a próxima obra.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

DUAS PAIXÕES NUM SÓ CORAÇÃO


Zeca Pereira é poeta, cordelista e editor. Desde 1993, trabalha com literatura de cordel, primeiro como folheteiro, depois como cordelista e, por último, como editor. Tem ministrado oficinas de poesia e de literatura de cordel nos mais variados eventos pelos quatro cantos do Brasil. Como cordelista tem dezenas de cordéis editados, com destaques para “A confissão de um drogado” editado pela Editora Luzeiro e “A alma de uma sogra” que está indo para sua sétima edição. Como editor tem organizado inúmeras antologias reunindo cordelistas de todo país. É o atual bicampeão do concurso de cordel (ZOORDEL 2022/2024) organizado pela Universidade Estadual de Feira de Santana e pelo Museu do Sertão. Há algum tempo escreveu, vendo a necessidade de aprimoramento e de conhecimento sobre o cordel, um manual com as técnicas de escrita intitulado ABC DO CORDEL. Zeca também é membro da Academia Barreirense de Letras.

Seja bem-vindo, Zeca, ao nosso espaço de entrevistas do blog Cosmo Literário. É uma grande alegria ter você aqui conosco para esse bate-papo.

O prazer é todo meu e espero corresponder às expectativas dessa entrevista.

Você, cordelista já há um bom tempo, pode começar nos contando como foi que começou essa história com o cordel? Como você se tornou um escritor conhecido e em atividade até hoje?

Meu contato com o cordel foi através de amigos de infância. Nós comprávamos os cordéis na feira, líamos e passávamos dia e noite decorando. Tudo isso só para saber quem conseguia decorar mais estrofes. Com o passar do tempo me tornei um folheteiro nas feiras de Barreiras e de São Desidério (município vizinho) a partir de 1993. Somente em 2002 editei o meu primeiro cordel intitulado Os lamentos de um ancião no asilo.

O que chamou e ainda chama a sua atenção no cordel que você não encontrou em nenhum outro gênero literário e fez você seguir com ele até hoje?

O que mais me cativou foi a maneira simples de se narrar uma história e a forma como você pode envolver as pessoas com ela, lendo, declamando ou até mesmo cantando as histórias. Como eu tenho dito: "Têm coisas que só acontecem no cordel".

Nesse longo caminho que você tem trilhado, você chegou a ter alguma referência que o inspirou ou o conduziu como cordelista?

Claro. Eu posso afirmar que a minha referência são os clássicos do cordel brasileiro. Sempre busquei saberes nos cordéis de Leandro Gomes de Barros, Manoel D’Almeida Filho, Antônio Teodoro dos Santos, José Pacheco da Rocha entre tantos outros.

Falando em clássicos, você tem defendido constantemente nas redes sociais a leitura dessa classe de cordéis. De uma forma geral, você nota uma grande diferença entre eles e os cordéis que são publicados na atualidade?

Nos cordéis clássicos encontramos tudo que um bom cordelista precisa para escrever de maneira clara e envolvente seduzindo o leitor, fazendo com que ele vá da primeira à última estrofe e ainda ficar com o desejo de querer mais. Posso até comparar como algo viciante. Os cordéis de hoje em dia não são tão atrativos, tanto que alguns autores editam 100 exemplares e passam mais de um ano para vender. Vejo alguns autores ainda presos em temáticas do passado como: fome, seca, miséria, amores proibidos etc... E isso já não chama mais a atenção dos leitores, principalmente dos jovens.

Concentrando-se na estrutura do cordel, que tem como base os princípios da métrica, rima e oração; você considera que dominando esses três elementos o cordelista tenha garantia suficiente de um bom cordel? Por acaso falta mais alguma coisa ainda?

Como você disse: rima, métrica e oração são os três pilares que sustentam o cordel, no entanto, há outros elementos necessários que não podem ser esquecidos como a linguagem usada, uma boa dose de lirismo, entre outras coisas. Eu costumo dizer que a melhor cartilha para aprender a escrever um bom cordel são os clássicos publicados pela Editora Luzeiro, pois foi com eles que aprendi o passo a passo da boa escrita.

Em sua considerável trajetória, que começou antes do advento da tecnologia, como você enxerga, nesse exato momento, a influência das mídias e das redes sociais na divulgação da literatura de cordel? Houve alguma mudança positiva e/ou negativa?

As mídias e as redes sociais têm sido muito importantes para a divulgação do cordel, aquilo que, para muitos, parecia que iria atrapalhar, no fim das contas, veio para ajudar. Por outro lado, é uma pena que existe muita gente nas redes que sai escrevendo qualquer coisa por aí e depois sai dizendo que é literatura de cordel. Fora isso, não há do que reclamar.

Além do cordel, muitos dos seus leitores não devem saber, mas você também exerce a atividade de radialista. O que o levou ao rádio? Como você faz para conciliar essas duas atividades tão diferentes?

Minha atividade como radialista começou em 2017. No início, o programa apresentado era voltado para o cordel e para o repente. Eu apresentava sempre aos sábados das 18h às 20 horas. Talvez pelo horário ou também pelo público não estar acostumado a ouvir repente, o programa não decolou, No ano seguinte, inaugurei outro programa das 16h às 18h de segunda à sexta, esse, voltado para o brega e para o sertanejo, o que foi um sucesso, tanto que até hoje é o programa com maior participação de ouvintes. Cordel e rádio são minhas paixões, mas como juntar não deu certo, tenho separado o público do radio e do cordel, diferente de outros radialistas que também são cordelistas. Muita gente que ouve o meu programa não sabe que escrevo assim como também muitos leitores espalhados neste país não sabem que sou radialista e assim eu tenho dois públicos distintos.

Quando foi que surgiu na carreira do escritor a ideia ou a necessidade de também ser um editor? Como se deu esse processo?

Na verdade todo escritor já é um editor o que falta é só expandir o número de edições. Eu, por exemplo, editava meus cordéis em gráficas, porém era tudo coordenado por mim: imagem da capa, diagramação, fonte etc. A ideia de ser um editor de obras de outros autores surgiu após a Editora Luzeiro, em 2016, resolver não lançar mais novos autores. Então comecei a formar parcerias. No caso, eu editava 250 exemplares, 100 exemplares o autor comprava de mim e os outros 150 iam para o catálogo da Nordestina Editora. Também passei a editar cordéis de domínio público, principalmente os de Leandro Gomes de Barros.

Deve haver diversos escritores por aí que já devem ter cogitado a ideia de também serem editores. Que conselhos você pode dar a eles em relação aos maiores desafios que você encontrou?

Na verdade, a maioria dos novos editores surge a partir do momento que aprendem a diagramar e imprimir o seu próprio cordel, porém, é necessário entender que ser um editor vai muito além disso. É preciso estudar sobre os editores, ter visão sobre o que pode ser melhorado nas edições, criar estratégias de venda, precificação e ainda ser um bom empreendedor. O meu maior desafio como editor sempre foi encontrar novos revendedores. No passado, havia os folheteiros que viviam de feira em feira vendendo cordéis. Hoje, eles são os donos de bancas de revistas, livrarias e papelarias e muitos não têm o interesse de revender cordéis. Alguns na verdade nem sabem o que é cordel.

Após tanto tempo como cordelista, você se aventurou pela prosa e publicou o livro “O cordelista tem que morrer”. Como surgiu essa ideia? Houve alguma diferença no processo criativo?

A ideia de escrever em prosa foi por ter feito de improviso algumas estrofes engraçadas zoando os amigos, principalmente em bares, e essas estrofes ficarem circulando entre eles, mas eu não tinha como aproveitá-las para impressão. Então surgiu a ideia de criar o personagem Zé do Cordel e escrever sua história em prosa, aproveitando as estrofes que seriam ditas por ele de improviso. O processo de criação foi muito lento pela falta de experiência e não saber como finalizar a história. O processo levou cerca de quatro anos, mas valeu a pena.

Zeca, o blog Cosmo Literário agradece o seu tempo e a sua presença. Foi muito bom poder ouvir as suas experiências literárias. Até a próxima.

Sou eu que agradeço pelo espaço para tratar de um assunto tão importante que é a literatura de cordel reconhecida como patrimônio imaterial brasileiro. Um abraço e até a próxima


quinta-feira, 18 de setembro de 2025

BALADA DE AMOR AO VENTO (LISTA FUVEST)


 

        Caros leitores e vestibulandos, hoje é dia de estreia da nossa página de livros para vestibular da FUVEST. Começaremos pela obra “Balada de amor ao vento”, da moçambicana Paulina Chiziane. Primeiramente, gostaria de frisar a importância simbólica desse livro que é considerado um marco na literatura moçambicana. Afinal de contas, trata-se do primeiro romance escrito por uma mulher, publicado em 1990, sendo também o primeiro a expor as temáticas do universo feminino. Guarde essa informação!

        Mas, antes de falar sobre a obra, achei necessária uma pequena apresentação da autora, pois, acredito eu, seja uma célebre desconhecida de estudantes e leitores brasileiros, então vamos lá: Paulina nasceu numa família protestante e cresceu no subúrbio da cidade de Maputo, capital do país. Aprendeu o português em uma escola católica e começou seus estudos de linguística na universidade, mas não chegou a terminá-los. Entrou para a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), mas, com o tempo, deixou a política para que pudesse se dedicar de forma exclusiva à literatura. Assim, iniciou sua atividade literária em 1984. Desde então, suas obras têm gerado algumas polêmicas acerca de questões sociais até porque a escritora discute temas nunca discutidos antes em sua terra, além do mais por uma mulher. Em 2016, decidiu abandonar a escrita. Ao longo da carreira, recebeu homenagens e condecorações, das quais convém destacar o Prêmio Camões (2021), considerado reconhecimento máximo a um escritor de língua portuguesa, além de ser tema de um documentário e ainda figurar na lista das cem mulheres mais inspiradoras do mundo, elaborada pela BBC.

         Agora, sem mais delongas, vamos ao que interessa: o tradicional resumo da narrativa, como resposta à clássica pergunta do aluno “Qual é a história?”. A protagonista, Sarnau, agora adulta, começa falando de suas lembranças, direcionando o leitor à sua juventude. É nessa época de estudos que ela conhece Mwando. Acontece que os dois acabam se apaixonando perdidamente e assim permanecem por um bom tempo. O rapaz vive um grande conflito interno porque está estudando com o desejo de tornar-se padre, mas, ao mesmo tempo, encontra-se perdidamente apaixonado por ela. Por fim, seu romance acaba por ser descoberto e ele acaba expulso do seminário. Ela, ainda muito apaixonada, descobre que está grávida e, para sua decepção (e esta é apenas a primeira de muitas), é abandonada por ele, que tem um casamento arranjado com uma moça, escolhida por seus pais por ser rica e de família católica.   

        Sarnau dá início a um penoso caminho, sozinha. Totalmente arrasada, resolve cometer suicídio para dar fim ao seu sofrimento, mas é salva. Como alternativa, procura um “griot” (espécie de curandeiro local) para abortar a criança da qual não conseguirá cuidar nas atuais condições. De repente, a vida lhe dá uma nova oportunidade: casar-se com Nguila, aquele que está destinado a ser futuro rei de sua terra. O casamento é realizado, Sarnau desfruta de uma vida de luxo e de estabilidade, o sonho de tantas mulheres de sua terra, porém, para a surpresa de muitos, não se sente nada feliz. Primeiro pela constante pressão para dar à luz um filho homem, pois só havia parido gêmeas, lembrando que estamos falando de uma sociedade patriarcal, na qual só o homem tem valor, ainda amarga uma convivência difícil com as outras esposas (seu marido, como tantos outros, é adepto da poligamia), que disputam a atenção principal do marido, em especial Phati. Como se não bastasse tanto desgosto, ainda sofre com a violência doméstica. 

           É em meio a esse mar de frustrações que, de repente, reencontra o antigo amor, Mwando, que resolve explicar sua saga: foi abandonado pela esposa logo após a morte de seu filho único. Logo após essa perda, ela o trocou por outro.  Diante de seu confesso arrependimento, Sarnau se vê dividida entre manter seu casamento (vida sofrida e estável) ou fugir com o grande amor de sua vida (que já a havia abandonado uma vez). Tudo isso ocorre justo agora que um curandeiro tinha feito com que o marido voltasse a procurar por ela, pois a disputa entre as esposas segue firme. Ela volta a se relacionar clandestinamente com o antigo amor e, para variar, volta a ficar grávida dele. Ele insiste para que fiquem juntos. Uma de suas adversárias, Phati, acaba denunciando-a por adultério. 

            Sarnau decide fugir com Mwando deixando tudo e todos para trás por causa dele, inclusive as filhas. Mais tarde, adivinha o que acontece? Com o argumento de temer alguma espécie de vingança do rei, ele a abandona (mais uma vez e grávida), o que talvez não cause ao leitor surpresa alguma. Novamente sozinha e desamaparada (já virou um hábito) é obrigada a se prostituir para devolver a quantia do “lobolo” (espécie de dote que a noiva recebe do noivo como compensação ao casar-se e que deve ser restituído em caso de separação) de Nguila. Sua filha Chivite passa mal e, de acordo com os curandeiros, só se curaria quando recebesse o nome do espírito causador de seu mal, por isso é renomeada Phati. O tempo vai passando e, tempos depois, como fosse uma maldição ou um “flashback”, quem ela reencontra? Ele mesmo: Mwando, que, para o espanto de todos, agora se diz novamente arrependido e conta mais um episódio de sua história, agora dos anos que passou nos campos de trabalho forçado em Angola. 

                Cansada de suas promessas, ela diz que desta vez ele terá que pagar o lobolo para poder ficar com ela, ao passo que ele a recrimina por se prostituir, recebendo a resposta de que foi apenas a consequência da situação em que mais uma vez ele a deixou. Dividida novamente entre a razão e a emoção, pressionada por seus sentimentos antigos e pela filha que necessita de um pai, ela acaba o aceitando de volta e assim termina a história.

     A respeito dos elementos narrativos, temos um foco narrativo em primeira pessoa, tudo é contado do ponto de vista de Sarnau, compartilhando com o leitor cada experiência. Ela não observa somente, mas sua narrativa vai sendo formada por sua vivência. É a voz que põe fim à mordaça patriarcal, permitindo que se possam conhecer seus pensamentos e sentimentos. Há apenas uma mudança de foco para a terceira pessoa nos capítulos que descrevem a relação de Mwando com sua esposa Sumbi. 

        O espaço limita-se a Moçambique, com destaque para alguns locais importantes para a protagonista, que nos mostram o contexto social do país na época e que buscam apresentar a cultura moçambicana, a vida nas aldeias e nas cidades, o choque entre a tradição africana e a sociedade colonial. O tempo, no contexto histórico da obra, situa-se no período colonial português; quanto à narrativa, é contado a partir do ponto de vista dela, já idosa, que relembra seu passado, portanto, não se trata de uma narrativa linear, de modo que as situações se repetem.  

    Entre as temáticas presentes, destacam-se o dilema entre os desejos individuais e o futuro imposto pela tradição e pela cultura; a denúncia da opressão e da exploração das mulheres na sociedade moçambicana; as dificuldades que elas enfrentam na luta por respeito e liberdade; a tensão entre a cultura cristã e as tradições africanas, exposta nas crenças e nos costumes; a estrutura social dominada pelo patriarcalismo e pela poligamia. 

    Destaque para a linguagem presente no livro que, de forma poética, contribui com leveza para um enredo marcado pela densidade conferindo leveza poética a um enredo denso e complexo, representada por diversas figuras de linguagem, como a palavra “vento”, que faz parte do título, representando a liberdade e a mudança constante de curso. Há também de se observar a presença da oralidade africana, trazendo elementos simbólicos e míticos. A descrição lírica da natureza é constante, simbolizando prazeres e frustrações, criando um contraste com a realidade cruel de um país devastado pela guerra e por inúmeros conflitos.

    Espero ter ajudado o caro vestibulando com esse texto. Conto com você novamente por aqui. Até a próxima!


 


quarta-feira, 17 de setembro de 2025

VIGÍLIA NAS SOMBRAS

 

Imagem obtida por IA


Faz-se noite...

Trevas desabam sob a luz diurna

Por terra caem todas as certezas.

Bruxas à solta!

Pairam no ar o temor e a insegurança

Precipitam-se impressões sobre os descrentes

Por entre as sombras, o esquivar dos vultos.

Os ouvidos tornam-se, repentinamente, atentos

A todo e qualquer ruído, inclusive ao mais furtivo,

Em meio à escuridão, uma agonia se instala.

Parece ter a duração de séculos

Encerrados no compasso dos ponteiros do relógio...

Mentes abrem espaço a medos irracionais,

O coração, ansioso espera, em constante vigília,

O clarear libertador da aurora.


Márcio Fabiano

terça-feira, 16 de setembro de 2025

TIÃO VALENTÃO E ROSA FORMOSA (MAIO 2025)

 

Capa de Hadoock de Aninha


TEMA

Quantos enredos na literatura já não exploraram a figura do “valente”, seja na condição de um embuste ou de verdadeira coragem? Desde os contos do regionalismo universal de Guimarães Rosa em personagens como Targino e Augusto Matraga até os cordéis clássicos com protagonistas como Antônio Cobra Choca (Antônio Vila Nova) e o Valentão do Mundo (Severino Milanês) e tantos outros que poderiam ser citados aqui temos o exemplo dessa personagem característica do sertão. Escolhida a figura do valentão por que não o introduzir numa história de amor, daquelas típicas dos folhetins do século XIX, com um tom açucarado? O resultado foi essa história classificada por mim mesmo como clichê, com espaço de destaque para um momento de dramaticidade inspirado nas páginas do romance “Quo vadis” (1896). Pode parecer muita idealização, mas foi uma tentativa de adoçar um pouco a vida do leitor um tanto enfadado pelo amargor da realidade.

SINOPSE

Essa é a história de duas personagens: Tião, um valente à moda antiga, no mais puro sentido da palavra. Famoso por não ter medo de nada e de ninguém, seu nome corre de boca em boca pelo sertão como o homem mais temido da região; Rosa, uma bela moça da cidade, fina, sofisticada, simpática, muito gentil e atenciosa, não havendo quem não goste dela. Quis o destino caprichoso que essas pessoas pertencentes a dois mundos tão distantes acabassem se encontrando em circunstâncias para lá de inesperadas. Após esse encontro, marcado por fortes emoções, a vida não será mais a mesma para nenhum deles. O que realmente mudará no destino de cada um? Poderão esses dois mundos em contraste conviver em completa harmonia superando tamanhas diferenças? 

Sempre dizem que o amor
É capaz de coisa tanta,
Com poder devastador,
Ele encanta e desencanta.
Entre a paixão e o fervor
Se rebaixa ou se levanta.

O leitor deve pensar:
Essa é mais uma daquelas
Histórias de se esperar:
Cenas e tramas singelas
Como tantas a rodar,
Com moças bastante belas.

Também deve haver mocinho
Que ofereça proteção,
Tirando da rosa o espinho
E trazendo a salvação.
Seguem o mesmo caminho
E se acaba a narração.

Não está de todo errado
Sobre aquilo que vai ler.
Este tema bem usado
Eu também quis escrever.
Mas foi bem elaborado.
Continue para ver.

Eu peço, neste momento,
Somente um pouco de crédito,
Pois não há regulamento,
Nenhuma espécie de édito
Ao citar tal sentimento.
Mais nada também de inédito. 

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

AS FRONTEIRAS ENTRE A LUCIDEZ E A LOUCURA; O IDEALISMO E O SENSO DE JUSTIÇA

 

Rosinante - ilustração de Gustave Doré
https://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.0/


“Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é utopia, não é loucura, é justiça”.

               Sejam bem-vindos, caros leitores e caras leitoras. Conforme prometido na semana passada, hoje começamos nossa grande jornada pelos clássicos universais É com uma das falas mais lúcidas de um dos maiores símbolos da loucura da literatura universal que começo nossa primeira viagem (prometendo retornar a ela no momento oportuno). Apertem seus cintos, pois estamos nos aproximando da Espanha, mais precisamente da região de La Mancha, uma área natural e histórica localizada no centro-sul, abrangendo partes das províncias de Albacete, Ciudad Real, Cuenca e Toledo, conhecida por suas vastas planícies. O ano é 1605. Antes que você me pergunte o que fazemos aqui, tão distantes no tempo e no espaço, eu respondo: vim apresentá-lo a um dos mais conhecidos, senão o maior de todos, personagens da literatura universal: o fidalgo Dom Quixote de La Mancha. Antes de partirmos, vamos preparar a nossa “playlist” de viagem com a música “Sonho impossível” (seja na voz do saudoso Altemar Dutra ou da esplêndida Maria Bethânia) cujo original “The Impossible Dream (The Quest)" é uma canção popular composta para o musical da Broadway de 1965, O Homem de La Mancha, também aparecendo no filme homônimo de 1972, estrelado por Peter O'Toole.

Esse compulsivo leitor das novelas de cavalaria (sim, ler pode virar uma compulsão, mas não se preocupe com isso agora) gênero literário predominante em sua época, em especial na península Ibérica, nosso protagonista, cujo nome real era Alonso Quijano, após tantas e tantas leituras, acabou mergulhando de cabeça no universo fictício do mundo medieval e de lá não conseguiu retornar jamais de tal forma que se batizou com seu novo nome de cavaleiro errante e passou a uma vida de aventuras, aquelas que tantas vezes lera nas novelas que abarrotavam as estantes de sua casa. 

O cavalo pangaré transforma-se no corcel Rocinante, uma bacia na cabeça torna-se o elmo de Mambrino e a camponesa da vizinhança vira a bela e nobre donzela Dulcineia. Tomado pelos elementos de idealização que retornariam mais tarde, no Romantismo, que vai adotar o cavaleiro medieval como herói, nosso paladino singular parte para a batalha. Acredite em mim, estimado leitor, nem uma centena de artigos nesta coluna seriam suficientes para cobrir as inúmeras proezas e aventuras vividas por ele, mas também não é esse o nosso objetivo. Até porque, para ser bem sincero, nada (guarde bem essa primeira lição literária!), nada pode substituir a leitura integral de um clássico.

O maior dos encantos dessa obra é, sem dúvida, a observação de um homem que trocou a realidade pela fantasia, o cotidiano pelo sonho. Sempre acordado, ele recusa-se a despertar para a realidade, colocando-se, o tempo todo, em maus lençóis pelos desvarios aos quais chama de aventuras. Agora, sim, retomando à nossa frase inicial, o protagonista enxerga sua missão de cavaleiro como a de qualquer outro homem comum neste mundo: a defesa da justiça. Justamente daí vem a simpatia por ele de tantos leitores como eu, que passam a desejar seu sucesso e torcer por um possível final feliz. Nosso cavaleiro busca a glória inacessível? Sim, mas por meio da manutenção de princípios mais do que sólidos e nobres. Isso nos põe a pensar: seria mesmo ele totalmente louco?

Uma das mágicas feitas pela literatura pode ser encontrada nesse livro, o qual o autor pretendeu usar como crítica ao gênero de cavalaria, que predominava em sua época como, segundo o mesmo, uma ficção exagerada que deturpava ao extremo a consciência da realidade. Acontece que (agora vem a segunda lição literária de hoje) nenhum autor tem controle sobre sua obra a partir do momento que ela sai de suas mãos e chega até o leitor. Nosso bravo Dom Quixote abriu um leque de releituras e interpretações a respeito da visão que se tem da realidade. Ao redor dos milhares de análises que já se fizeram, notamos em destaque palavras como loucura, alienação, utopia, idealismo e muitas outras.

Ao escutar um trecho da tradução da faixa original de nossa “playlist” de hoje: “Sonhar o sonho impossível,/ Sofrer a angústia implacável,/ Pisar onde os bravos não ousam,/ Reparar o mal irreparável,/ Amar um amor casto à distância,/ Enfrentar o inimigo invencível,/ Tentar quando as forças se esvaem,/ Alcançar a estrela inatingível:/ Essa é a minha busca”, fica claro o idealismo com o qual nosso guerreiro se reveste tal qual uma armadura impenetrável. Mesmo perdendo o senso da realidade, ele jamais abandona o ímpeto de lutar, lutar por algo que valha a pena, lutar por algo que faça sentido. Não se trata de um sonho egoísta ou mesquinho, uma besteira ou um mero capricho, mas um sonho que abarca um mundo todo. Um mundo que todos nós gostaríamos que se concretizasse. 

Dom Quixote faz o perfil do herói solitário, como tantos o são (ou será que solitária é a sua causa?), mas, para sua penosa diligência conta com a ajuda de seu escudeiro Sancho Pança, uma pequena parcela de juízo ou senso encarnado em um homem simples e que vê tudo de uma maneira muito pragmática ou prática. É como uma consciência que o tenta fazer colocar os pés no chão novamente e fazê-lo enxergar o quanto pode perder com essa sua louca busca (e aqui não há como não se lembrar do grilo falante que acompanha o personagem Pinóquio, do italiano Carlo Collodi, em suas aventuras). São dois opostos que se completam nessa jornada, mas que se resumem a dois extremos: enquanto esse não enxerga a realidade, aquele não se permite sonhar jamais.

A mais emblemática passagem do livro se dá quando o paladino da justiça confunde os moinhos de vento, tão comuns em sua região, com verdadeiros gigantes, e parte em ataque impetuoso, mesmo sob as advertências vazias de seu fiel escudeiro; episódio eternizado em telas de célebres pintores como Salvador Dali e Pablo Picasso e, mesmo léguas e eras distantes, na letra da música homônima do grupo Engenheiros do Hawaii no trecho: “Por amor às causas perdidas/ Tudo bem, até pode ser/ Que os dragões sejam moinhos de vento” (também vale a pena ouvir). Aproveitando o rock nacional, por que não lembrar a bela canção “O poeta está vivo”, composta por Frejat em homenagem a Cazuza com o trecho “O poeta está vivo/ Com seus moinhos de vento/ A impulsionar/ A grande roda da história” que faz uma bela comparação do poeta, com seus sonhos e desafios diante da crua realidade, com o nosso eterno cavaleiro que, aliás, deu origem ao adjetivo “quixotesco”, que caracteriza a pessoa utópica e sonhadora, inclusive deu vida a tantos fantásticos personagens, entre eles, nosso Policarpo Quaresma, da obra de Lima Barreto, que muito merece uma leitura.

Nossa viagem de hoje termina por aqui, com algumas reflexões que podem durar até a nossa próxima escala: cá entre nós, amigo leitor, quem nunca teve seus lampejos ou seus surtos quixotescos? Quem de nós não teve um sonho classificado como impossível ou simplesmente absurdo por outras pessoas? Que nunca desejou mudar a realidade em que vive ou até mesmo querer fechar os olhos para o mundo que nos cerca e sonhar, mesmo que por uma fração de segundos, com outra realidade? Quantos já não foram chamados de tolos ou loucos por almejar algo considerado impossível pela maioria? Despeço-me desejando, de coração, que nenhum de nós deixe apagar aquela centelha de Dom Quixote que resiste bravamente dentro de cada um. Não estou pedindo que se ignore a nua e crua realidade, mas, que nenhum de nós abra mão do direito de sonhar com um mundo mais justo e mais humano. Como diz um trecho de mais uma canção do musical “O homem de la Mancha”: “Pois quem não se aventura/ Com fé e ternura/ Não pode o mundo mudar”. Caro leitor, que ninguém perca a ternura, jamais. Salve, Dom Quixote! Padroeiro dos loucos e dos sonhadores.


SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. Dom Quixote. Rio de Janeiro: Antofágica, 2024.

 


A JORNADA DE UM HOMEM É FEITA DE SUAS ESCOLHAS

Domenico Di Michelino "Dante e os três reinos" https://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/  “Vós que entrais, abandonai tod...