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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

PRESENTE

Crédito: Cottonbro Studio (PEXELS)

 

Corre, meu jovem, não demora!

A eternidade é ouro de tolo

O tempo foge ao mais suave toque dos seus pés...


A cada esquina esconde-se um novo perigo

A boca faminta escancarada à sua espera,

Mas o alto dos edifícios oferece

Verdadeiras maravilhas aos olhos mortais

Faltam braços arrojados para a escalada.


As batalhas cotidianas são inevitáveis,

Porém os custos das vitórias devem ser ponderados

E muitos caminhos levam para Roma…

Certas tempestades poderiam ser evitadas

Apenas com a lembrança de que os ventos mudam a direção…

O sol nasce para cristãos e hereges

Basta acordar cedo para ter direito ao espetáculo.


Enquanto se lamenta a chuva a cair

Recorda as flores que vão desabrochar mais belas…

E ao cair da noite, no lugar de amaldiçoar a escuridão,

Deita o corpo na grama e admira as estrelas

Até que adormeça feliz pelo presente de mais um dia.


segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

DE UM LAMPEJO DE VAIDADE AO NARCISISMO QUE SEQUESTRA A ALMA

Crédito: Foro3D.com

 

“A harmonia do corpo e da alma... Nós, na nossa cegueira, separamos estas duas coisas para inventar um realismo vulgar e uma idealidade vazia!”

                 Seja bem-vindo, caro leitor; seja bem-vinda, cara leitora. Desculpem-me a pressa, mas, como diria o saudoso Cazuza em sua canção “O tempo não para”. Dirija-se até a poltrona reservada, acomode-se à sua maneira porque vamos seguir viagem mais uma vez. Prepare-se para mais um salto no tempo e no espaço, pois nosso itinerário jamais segue em linha reta. Em um verdadeiro ziguezague, seguimos pelo velho continente em nossa turnê literária. Vamos partir imediatamente da conturbada Tchecoslováquia com destino à melancólica Londres, em plena Era Vitoriana (1890), para testemunharmos mais um drama humano. Iremos, mais uma vez, acessar nossa costumeira “playlist” com a trilha sonora feita por Charlie Molly para o filme “O retrato de Dorian Gray” de 2009 sob a direção de Oliver Parker.

                 Estamos chegando ao exato momento em que o sensível artista, o pintor Basil Hallward está dando início a uma nova obra de arte, utilizando-se de Dorian Gray, seu nobre anfitrião, como modelo de corpo inteiro para a tela que o pintor considera ser um novo conceito de arte. Dorian é um jovem, dono de uma beleza estonteante, a qual chama a atenção de qualquer pessoa que o avista. É aí que entre em cena o amigo do pintor, Lord Henry, um aristocrata que adora emitir sua opinião sobre os mais diversos assuntos, que não deixa de reparar na beleza incomum do jovem rapaz. Como boa parte dos jovens, ainda em processo de formação acerca de sua condição perante o mundo, Dorian é uma pessoa facilmente influenciável, além do mais perante um homem experiente e vivido como Lord Henry.

                O tema principal da conversa entre os três acaba sendo a beleza e a juventude como uma combinação perfeita que oferece ao seu detentor um passaporte irrecusável para adentrar aos mais diversos prazeres que o mundo pode oferecer. Prazeres estes que não estão ao alcance de todos, porém totalmente possível ao jovem Dorian. Durante o diálogo, ele começa a vislumbrar um novo mundo de possibilidades e, convencido pelos dois homens de sua magnífica beleza, teme que esta um dia simplesmente desapareça, verdade mais do que certa, não é, caro leitor? Afinal, se tem alguém que jamais mente, esse é o tempo.

                  Diante de tal temor, ele faz um desejo, do fundo de sua alma: que o quadro possa envelhecer no seu lugar, para que ele conserve sua beleza para sempre. Pergunto, agora, a você: quem nunca teve um desejo assim, mesmo que passageiro, um dia, olhando o próprio retrato? Contudo, o desejo do jovem não teve nada de superficial ou momentâneo. Não, meu caro. Atrevo-me a dizer que o pobre rapaz jamais desejou algo assim, com tamanha intensidade. Nesse momento, acredito que inconscientemente, Dorian firma um pacto. Isso mesmo, eu não me enganei não. A partir de agora, que a tela de Basil absorva toda a passagem do tempo no lugar do belo corpo dele. Gostaria de fazer um aparte: a palavra pacto significa acordo entre duas partes. Nesse momento você pode estar imaginando: “Quem seria a outra parte no acordo com Dorian?”. Ah! Caro leitor, nem tudo o livro nos responde..., mas eu e você podemos imaginar que não se resume a alguém (ou algo) com boas intenções, não é? Até porque, nas narrativas, sejam elas populares ou clássicas, a palavra pacto acaba por referir-se, no fim das contas, a alguma entidade de natureza demoníaca.

                  A partir de então, Dorian passa a curtir a vida intensamente, em seu mais pleno significado, desfrutando da dádiva (ou maldição) de não envelhecer nunca, um só dia ao menos. É quando conhece Sibyl Vane, uma atriz shakespeariana que se apresenta em um teatro de aspecto um tanto quanto sombrio. Ela, que só tivera olhos para a carreira e para o palco durante toda a sua vida, agora vê desabrochar o amor por alguém: o “príncipe formoso”, como ela costumava chamá-lo. Ele corresponde ao seu amor, porém, em uma primeira oportunidade, quando ela faz a escolha pelo amor do jovem, desistindo de sua carreira, por entender que não havia espaço para duas paixões tão intensas, ele a despreza e a humilha, alegando que a sua atuação era a beleza que ele via nela. Extremamente cruel, Dorian sai da vida de Sibyl. Ao chegar a sua casa, observa o quadro e, para sua surpresa, percebe nele um sutil sorriso e crueldade. Sim, caro leitor, para nossa surpresa, o quadro não só absorvia o envelhecimento do jovem, mas também todos os seus pecados, isentando-o de qualquer consciência moral. Mais tarde, num raro arrebato de arrependimento, ele tenta retomar seu relacionamento com a atriz quando recebe a notícia de que ela havia cometido suicídio, tomando uma espécie de ácido. A partir de agora, o jovem pautará sua vida somente pela luxúria, no mundo das aparências, em uma vida puramente libertina.

                Disse Chaplin: “A beleza é a única coisa preciosa na vida. É difícil encontrá-la, mas quem consegue descobre tudo”. Vindo de um homem cuja arte, sensível e inteligente, encantou a gerações (e continua encantando) não pode tratar-se de um engano. Acho que não. Creio que o equívoco reside justamente na interpretação sobre o conceito de beleza. Eis nosso ponto de partida de hoje: a que beleza se referia Chaplin? Seria a mesma que Dorian quis conservar consigo?  Antes de tudo, gostaria e salientar ao leitor que não sou, de forma alguma, contra a beleza. Jamais. O que quero colocar em evidência é a importância que se dá a ela em nossa sociedade e, consequentemente, como ela se faz presente.

                O personagem Lord Henry é uma alegoria do hedonismo que, em poucas palavras, é uma filosofia de vida que defende o prazer como o bem supremo, portanto, uma finalidade que não possui um código de ética, não se prendendo a moral alguma. É o que passa a viver o jovem Dorian de forma totalmente desenfreada. Dessa maneira, vai passando como um verdadeiro rolo compressor sobre os sentimentos das moças com que encontra. Cada comportamento tenebroso vai sendo absorvido pelo quadro, que vai tomando uma aparência horrenda, tornando-se um retrato fiel da alma de Dorian. Com o passar do tempo, o rapaz já não consegue mais encarar sua face na pintura, escondendo-a em um quarto de sua casa, como quem não pode mais encarar a si mesmo.

Quando a busca pelo prazer passa a ignorar qualquer diretriz, viver torna-se uma aventura perigosa. E o que isso tem a ver com a beleza? Na verdade, tudo. Aqui falo de uma beleza unicamente externa. Aparência e nada mais. Aquela beleza que, de um entre outros atributos, passou a meta exclusiva. Aquela mesma que acabou fazendo o pobre Narciso (mito grego indispensável para esta reflexão) apaixonar-se por si mesmo a ponto de perder a própria vida na beira do lago. Ah! Que mito tão cruel e ao mesmo tempo tão real! É por isso que existe o termo “narcisista” que faz todo o sentido aqui.    

                Vivemos uma nova ditadura: a ditadura da beleza, difundida por redes sociais, aplicativos diversos, programas de televisão e pseudocelebridades. Presenciamos a época do corpo perfeito e sarado, das medidas enxutas e exatas, das meninas que sonham em ter o corpo da boneca Barbie (e por que não também loiras e de cabelo liso?). Assistimos ainda a um momento em que as pessoas querem alcançar o “padrão de beleza” (que sempre achei ser um valor subjetivo) a todo e qualquer custo, inclusive, alguns, movidos pelo desespero inconsciente, buscam por soluções mágicas (procedimentos cirúrgicos e fórmulas mirabolantes) – cabe aqui lamentar, com grande pesar, as tantas mulheres que perderam suas vidas fazendo lipoaspiração ou comprometeram sua saúde colocando próteses de algum tipo. Existe até uma doença catalogada como síndrome de Dorian Gray, em que a pessoa tem medo de envelhecer por causa da aparência (conheço tanta gente que oculta a própria idade – só não entendo o sentido).

                O sagaz leitor e a atenta leitora que me acompanham já devem imaginar que a trilha escolhida por nosso protagonista irá conduzi-lo a um final tão trágico quanto ao do jovem grego citado anteriormente. Infelizmente ou não, cumprindo minha regra de ouro, não revelarei o final. Terá de ler o romance. Mas, agora, voltando-se ao autor: Oscar Wilde, em sua obra, faz uma pergunta a nós, leitores: “Existe um limite na busca pelo belo?” Em seu pacto, Dorian pagou pela beleza eterna com a sua própria alma. Ele trocou tudo que tinha para ficar somente com ela. Em um mundo de selfies e posts, curtidas e likes, o narcisismo encontra-se em um farto banquete, em uma longa mesa, onde tantos tomam seus lugares, tendo a vaidade como prato principal.  Assim termino minha reflexão com um trecho da canção do inteligente Zeca Baleiro: “Mundo velho e decadente mundo / Ainda não aprendeu a admirar a beleza / A verdadeira beleza, a beleza que põe mesa / E que deita na cama, a beleza de quem come / A beleza de quem ama / A beleza do erro, do engano, da imperfeição”. Até a próxima.

 WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Rio de Janeiro: DarkSide, 2021.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

O MUNDO É UMA GRANDE RODA

Crédito: Jennifer Dridiger (PEXELS)

Tudo aquilo que começa

Vai um dia acabar

E quem hoje tanto fala

Amanhã vai se calar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.


É bom prestar atenção

Naquilo que quer causar

Tudo aquilo que hoje vai

Amanhã pode voltar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.


Todo aquele que só sorri

Pode passar a chorar

E quem sempre andou tão firme

Pode vir a tropeçar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.


Quem hoje nada em dinheiro

Pode até pobre ficar

Quem escolhe tanta amizade

Sozinho vai terminar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.


Alguém que a tantos magoa

Também vai se magoar

Quem se sente tão seguro

Um dia vai duvidar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.


Aquele a quem você fere

Pode um dia te curar

E quem cometeu um erro

Um dia vai acertar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.

 

Quem já foi injustiçado

Pode vir a perdoar

E quem já passou por réu

Um dia irá julgar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.


Quem se sente poderoso

Pode um dia fraquejar

Quem sempre canta vitória

Um dia não vai ganhar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.


Quem dispensa mil conselhos

Vai um dia precisar

E aqueles que os davam

Pode não mais encontrar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.


Pois não passa de tolice

Querer se vangloriar

Achar-se superior

Ter sempre o melhor lugar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.


Para quem acha que tudo

Já não tem como mudar

Basta apenas um segundo

Pra poder se transformar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.


Eu termino essa conversa

E um conselho quero dar

É bom ter muito cuidado

Para em alguém não pisar

O mundo é uma grande roda

Que não para de girar.


quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

CONJETURAS

Crédito: Kristin Vogt (PEXELS)

 

Sentado sobre o meu comodismo

Espero os ventos trazerem a boa-nova...

A superfície plácida do lago

Esconde um fundo de lama negra...

Aves voam para o norte

Destino contrário das minhas esperanças

Trancadas no porta-malas do carro.

 

Se o anúncio das nuvens fosse de confiança,

A chuva lavasse todos os meus pecados,

A manhã resplandeceria cor de paraíso

E meus sonhos de asas novas

Partiriam em perseguição às aves

No azul celeste da liberdade.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

O VERDADEIRO DILEMA DE TODO HOMEM

Crédito: David Kanigan (PEXELS)

"Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total do fardo faz com que o ser humano se torne mais leve que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semirreal, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?"
 
                Seja bem-vindo, caro leitor; seja bem-vinda, cara leitora. Subam todos a bordo para mais uma de nossas viagens. Aperte os cintos e prepare-se para mais uma de nossas modestas aventuras pelas páginas da literatura universal.  Deixemos agora o Império Austro-Húngaro, palco de uma narrativa das mais inverossímeis possíveis, para partirmos em direção à antiga Tchecoslováquia. Antes que o amigo leitor o diga, bem sei que tal nação não mais existe, pois, como tantas outras, foi secionada e distribuída como um bolo de chocolate o qual se reparte entre duas crianças para não haver mais brigas. Acontece que sou um saudosista e adoro usar os nomes da época. Vamos nos encaminhar para a capital Praga, na primavera de 1968 (mas o livro foi feito em 1982 e publicado em 1984 – prefiro não entrar em detalhes). Isto deve ser, talvez, o mais próximo que chegaremos até então de nossos tempos atuais. Falta acionarmos nossa “playlist”, utilizando-se da trilha sonora composta para a adaptação do clássico para as telas, de 1988, pelo diretor Philip Kaufman, trilha essa que conta com várias peças clássicas do compositor tcheco Leos Janacek, além de uma versão em tcheco para a famosa “Hey Jude” dos Beatles.  

                Hoje, por falta de um protagonista, teremos, na verdade, quatro deles em nossa narrativa. Comecemos pelo principal: Tomas, um cirurgião, intelectual, solteiro convicto, que faz das mulheres a sua grande e única diversão; um verdadeiro seguidor do lema “carpe diem”. Assim, ele segue sua vida até que, num certo dia, seus olhos encontram os olhos de Tereza: uma garçonete de olhar infantil e de alma frágil. Após essa colisão de olhares, ambos se enlaçam, pois Tereza, de natureza ciumenta, reflexo de sua insegurança, pretende tomá-lo somente para si. Porém, já é de se esperar que seja um tanto quanto difícil para Tomas refrear seus instintos e desejos por outras mulheres e que, para ele, quebrar os grilhões da monogamia seja apenas uma questão de tempo e de oportunidade.

                É agora que introduzo ao amigo leitor, Sabina: uma mulher notável, uma artista transgressora, figura arrebatadora que, diferentemente de Tereza, age conforme as próprias crenças, tendo, como única lei, a liberdade, pouco ou nada se importando com a visão que a sociedade dela venha a fazer. Eis a amante perfeita para o nosso Don Juan em questão. Inicia-se, dessa forma, um triângulo amoroso. De uma certa maneira, as duas mulheres na vida de Tomas passam a representar o peso (Tereza) da mulher individual e idealista que se prende ao casamento como um náufrago a sua tábua de salvação; e a leveza (Sabina) da mulher que não se agarra a absolutamente nada, vivendo um dia de cada vez. Eis, querido leitor, a grande e a maior das dualidades que premeiam tal enredo.

                Não menos importante – aliás, totalmente intencional – ao meu modo ver, é o período histórico em que as personagens situam-se: a Guerra Fria. A União Soviética (aqui vai mais um bolo a ser fatiado no futuro, com generosas porções) invade e domina a Tchecoslováquia como um território. Assim sendo, a liberdade passa a ser uma constante nas discussões e reflexões das pessoas, o que não seria diferente para os nossos personagens. Como consequência, Sabina sente-se sufocada pelo fardo da opressão e vai para Genebra para respirar ares mais leves e descontraídos. Tomas e Tereza, um pouco mais tarde, veem-se obrigados a mudar-se para a Suíça devido a problemas que ele enfrenta com a censura por causa de um artigo escrito.

Lá, o triângulo volta a ser constituído, porém, agora, teremos a formação de um quadrilátero com o surgimento do quarto protagonista pelo qual o leitor já deveria estar esperando: Franz, um homem que costuma refugiar-se em seu próprio intelecto para não se apegar a ninguém; mas que, como Tomas, acaba atingido pelo turbilhão que é Sabina. Assim como Tereza, Franz vê na relação amorosa uma zona de conforto, uma espécie de refúgio em que possa se abrigar do mundo. O leitor deve ter percebido que dentro da dicotomia proposta pelo autor, Tereza e Franz situam-se numa margem; Tomas e Sabina, na margem oposta.

Este livro, caro leitor, tem de tudo um pouco: filosofia, história, amor, arte, entre tantas outras discussões, pois é dessa matéria que são feitos os clássicos: a infinidade de temas que trazem consigo jamais terão suas discussões encerradas e, com nosso sagaz Milan Kundera não será diferente. Assim como foi com Kafka, Dostoievski e outros que já passaram por aqui, sua obra é uma fonte inesgotável de reflexões acerca dessa nossa vida.

Os dois célebres casais desse romance partem em busca de um sentido para as suas vidas (atitude comum entre os meros mortais), cada um à sua maneira, usando o amor como possível medida. Tomas tenta fazer Tereza feliz, contudo não consegue ir contra a própria natureza, lembrando-me do naturalismo que procura compreender o comportamento do protagonista no livro “O crime do Padre Amaro” de Eça de Queirós. Por outro lado, cabe-nos lembrar aqui a frase eternizada em “O pequeno príncipe”: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Por isso, o autor utiliza-se desse sentimento para demonstrar a tentativa das personagens de encontrarem uma referência como norte.

Este livro fala, acima de tudo, sobre as escolhas que temos de fazer em todos os momentos de nossas vidas, como na frase do livro que abre nossa viagem de hoje. Elas fazem de nós o que somos e, como diria Fernando Pessoa: “Quem escreverá a história do que poderia ter sido o irreparável do meu passado; Este é o cadáver. Se a certa altura eu tivesse me voltado para a esquerda, ao invés que para direita; Se em certo momento eu tivesse dito não, ao invés que sim; Se em certas conversas eu tivesse dito as frases que só hoje elaboro; Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro seria insensivelmente levado a ser outro também." Não é possível voltar, caro leitor, nem imaginar como seria. O que vale é sempre o agora e, a partir dele, não há hipótese para o passado.

                Após ler esse livro, fica-se a pensar: estamos condenados, presos para todo o sempre a essa tal dualidade?  A vida nos apresenta dois caminhos a seguir. Como revela aquela canção de Lulu Santos: “Não existiria som / Se não houvesse o silêncio / Não haveria luz / Se não fosse a escuridão / A vida é mesmo assim / Dia e noite, não e sim”, provando que a dualidade faz parte de nossa natureza, como mais à frente ainda completa: “Nós somos medo e desejo / Somos feitos de silêncio e som”. Tereza e Franz escolheram o fardo do peso, presos com os pés no chão, abraçaram-se às rotinas e aos velhos caminhos, para eles seguros; enquanto Tomas e Sabina optaram pela leveza do ar, soltos a voar, buscando na liberdade o verdadeiro sentido para suas vidas.

                Agora, eu te convido, caro leitor, a pensar um pouco mais aqui comigo: e se, lá no fundo, Kundera quisesse nos dizer, por trás de tudo isso, por entre os extremismos da repressão e da libertinagem, que a solução é buscar o equilíbrio, que você não precisa necessariamente escolher entre um e outro, como diziam os antigos “Nem tanto ao céu, nem tanto à terra”, ditado que dizem ter sido inspirado no mito do voo de Ícaro (pena que nos falta tempo para explorar), contido na história do Minotauro. O que se deve fazer é buscar o comedimento, o que me faz lembrar do médico e físico suíço Paracelso (séc. XVI) cuja célebre frase uso para encerar esse artigo: “A diferença entre o veneno e o antídoto está na dose”. Até a próxima.

 

KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.         

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

NUNCA É TARDE PARA AMAR

Crédito: Min An (PEXELS)

 

Se você já se cansou

Do grande amor procurar

Se duvida que ele exista

E não vai mais se importar

Não desista de tal busca

Nunca é tarde para amar.

 

Quem acha que só os jovens

Podem enfim namorar

Que já se passou da idade

De o seu amor encontrar

A paixão não marca hora

Nunca é tarde para amar.

 

Pra quem se sente iludido

E cansado de esperar

Que o amor da sua vida

Parece jamais chegar

Tudo tem seu tempo certo

Nunca é tarde para amar.

 

Para quem já se frustrou

Não quer mais se apaixonar

Achando não mais poder

Em alguém acreditar

A vida guarda surpresas

Nunca é tarde para amar.

 

Se só o ódio recebeu

Fazendo você chorar

Amor não correspondido

A ponto de se humilhar

Não faça você o mesmo

Nunca é tarde para amar.

 

Se todos ao redor dizem

Que é tolice então gostar

Entregar-se a outro alguém

Só vai se sacrificar

Existe a lei do retorno

Nunca é tarde para amar.

 

Se ainda assim afirmarem

Que é cruel se apaixonar

Fará de você um servo

Capaz de se acorrentar

O amor também liberta

Nunca é tarde para amar.

 

Eu termino estes meus versos

Sem vergonha de afirmar

Jamais deixe o amor de fora

Por medo de machucar

Ele faz valer a pena

Nunca é tarde para amar.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

ACEITAÇÃO

Crédito: Kai Stachowlak

 

Não preciso do seu amor

Os beijos já me bastam

Não quero o seu carinho

Desejo esse belo corpo e nada mais.


Para que juras de amor

Se não podem ser verdadeiras?

Por que confessar uma paixão

Que está prestes a perder a validade?



Qual a finalidade de usar a palavra sempre

Se ela nunca vai se realizar?

Como dizer que sou só seu

Se não temos a completa posse sobre ninguém?



Deixe o instinto falar por nós

O calor dos corpos não mente

A atração é a maior e mais sincera das declarações

E a sedução suprime a carência.



Afinal para isso fomos criados:

Unir-se em pleno gozo e êxtase

E depois seguir cada um o seu caminho

Eternizando os bons momentos.



segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

O HOMEM EM PROCESSO DE DESUMANIZAÇÃO

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“É bom quando nossa consciência sofre grandes ferimentos, pois isso a torna mais sensível a cada estímulo”.

                 Aqui estamos nós de volta, prezado leitor, para mais uma de nossas peregrinações aos templos sagrados da literatura. Eu o convido, mais uma vez, para partirmos em busca das tantas facetas humanas, escondidas nas páginas dos grandes clássicos, espalhados ao redor do nosso extenso mundo. Estamos de partida da bela São Petersburgo, imponente joia russa, em direção ao Império Austro-Húngaro. Você, caro companheiro de viagem, deve estar pensando: “Onde fica isso”? Meu amigo, não gastarei nosso precioso tempo com explicações históricas e geográficas. Apenas resumirei que se trata de um império que foi dissolvido em 1918, após sofrer amarga derrota na Primeira Grande Guerra e, para não deixá-lo perdido, tem como sua base, hoje, a Áustria, que abriga a belíssima e austera cidade de Viena, aquela das famosas valsas de Strauss. Vamos acessar a nossa peculiar “playlist” hoje apresentando uma trilha de nome “A metamorfose” tocada pela Orquestra de Ouro Preto que serviu como fundo para uma adaptação infanto-juvenil sobre o clássico a seguir.

                Situamo-nos no ano de 1915, embora o livro, segundo o que me contaram, foi escrito em 1912 (num espaço de apenas vinte dias). Mas isto é outra história e que pode retardar nosso avanço em direção ao nosso protagonista: Gregor Samsa, um caixeiro-viajante (uma profissão tão antiga quanto o próprio nome sugere ser) que trabalha em um emprego do qual não gosta, mas que foi a forma encontrada por ele para pagar a dívida de seus pais (razão principal por se entregar a uma atividade que detesta). Gregor é o que os mais velhos chamam de arrimo de família, já que seu esforço (e só o dele) sustenta o pai, a mãe e a irmã.

                Mal temos tempo de conhecê-lo e, eis que o conflito cai como uma bomba sobre nossas cabeças. Nosso herói acorda sentindo-se estranho e, qual não é a sua surpresa (para não dizer espanto ou até mesmo desespero) para não dizer também de nós, leitores, quando ele descobre que se transformou em um inseto gigante, que se costumou definir por uma barata, como na música “Uma barata chamada Kafka”, da banda Inimigos do Rei, lá pelos anos 90, mas que em nenhum momento foi claramente determinado pelo narrador. Inclusive, trata-se de algo tão insólito que nem se faz a mínima ideia de como tal fato aconteceu. Mais inimaginável ainda, meu caro leitor, é a primeira grande preocupação de Gregor: ele não terá como trabalhar e poderá perder o emprego.

                Não demora a que o gerente do armazém em que ele é funcionário venha verificar o que aconteceu. Não se trata de uma preocupação com o funcionário, mas com o prejuízo que tal ausência possa acarretar ao seu lucro. Até para convencer-se de que realmente ele não estava apto a trabalhar. Porém este é o menor dos problemas: a transformação (metamorfose) de Gregor vai provocar um efeito cascata sobre sua família, pois, agora, ele não pode sustentá-los, o que vai influenciar de forma direta na rotina da casa. Seu pai agora terá de voltar ao trabalho. Sua família vai deixá-lo isolado no quarto para que não sejam obrigados a ver a criatura repugnante que ele se tornou. Todos dependiam dele e, agora, em uma reviravolta, ele passa a depender deles para as tarefas mais simples. Gregor conta com a compreensão somente da irmã, que ainda nutre por ele alguma afeição.  

                O pai passa a trabalhar, mas como se observa, nem tira o uniforme para dormir, como se fizesse parte dele. Surgem novos inquilinos para alugarem quartos na casa. Por isso, Gregor não pode sair de seu quarto, coisa que acontece certo dia, assustando a todos eles e pondo fim ao contrato, o que acaba por ocasionar o ódio de sua irmã. Ele agora se tornou um fardo para a família, alguém que ninguém conseguia mais encarar, dirigir o olhar por poucos segundos. Era uma verdadeira aberração. Todos desejam a sua morte. Para que ele pare de sofrer? Infelizmente não, caro leitor, mas para o fim do sofrimento deles. Gregor não era mais o esteio da família, portanto, não tinha mais qualquer utilidade.

                Ao sofrer a metamorfose, ele só pensava no seu trabalho, que ele mesmo confessara detestar, por saber que ele era o sustento de todos, aliás, só concordou em trabalhar pensando em sua família. Também temos outro lado: aquele trabalho era a única coisa que fazia, portanto era o que o definia de certa forma. Ficar sem ele seria como perder sua identidade, como se pode observar na música do Gonzaguinha: “Seu sonho é sua vida / E a vida é trabalho / E sem o seu trabalho / Um homem não tem honra...” Pergunto a você, amigo leitor, quantas pessoas por aí você conhece que, ao serem interrogadas sobre quem são ou o que fazem, respondem prontamente com sua profissão. Se nunca o fez, faça o teste. Mas, ao mesmo tempo, o trabalho que o identificava era a atividade que o descaracterizava como ser humano. Parece um tanto paradoxo, não é? Para alguns, impossível de se imaginar...

                É aqui que o sagaz Kafka queria chegar: o processo de desumanização do ser humano, a perda de sua essência, de sua sensibilidade. A rotina que absorve o homem como uma areia movediça invisível, destituindo-o de suas , digamos, humanidades. Ele começa a perder aquilo que o difere dos demais seres: segue regredindo, transformando seus possíveis talentos em meros instintos. É dessa metamorfose que o livro nos fala: de uma família preocupada não com a perda do ente querido, mas da fonte de renda, do gerente preocupado não com a perda do companheiro de trabalho, mas da mão de obra. É o homem que se despe de sua humanidade e, por consequência, de sua dignidade.

                Vemos aqui o absurdo da condição humana, da alienação, que acaba por tornar o homem uma besta-fera, como tão bem exemplificado no livro “Vidas secas” de Graciliano Ramos. O que liga o vaqueiro Fabiano, no sertão das Alagoas, ao Gregor do Império Austro-Húngaro? O processo de animalização do homem, o qual passa a ser tratado como um bicho qualquer. E isso tudo, por quê? Porque nossa individualidade, aquele bem precioso, entra em conflito com os padrões sociais determinados sabe-se lá por quem.

                Vivemos em um mundo, caro amigo leitor, em que as mortes deixam de referir-se às pessoas para tornarem-se números, meras estatísticas. Os acidentes e tragédias já parecem ter tomado o lugar comum e muitos chegam a citar vários deles como simples dados. A matéria passou a falar mais alto e o dinheiro que era para ser um meio de subsistência, agora é o objetivo de muitos. E o que fazer com tanto dinheiro? Ora, comprar, comprar e comprar. Ter é o verbo que substitui o ser na definição da essência humana hodierna. Pergunta-se, com frequência, quantos seguidores um artista ou celebridade tem, afinal, nas redes sociais, mas raramente se busca saber quem ele é, na verdade. Que valores ele segue? Sua personalidade pode ser traduzida entre curtidas, visualizações e seguidores...

                Quero terminar aqui, amigo leitor, deixando a simbólica imagem da metamorfose da borboleta, aquela já muito discutida e usada em nossa literatura (e não é à toa) por trazer ricos significados sobre a evolução e a superação, descrita nas palavras da canção “Metamorfose”, mesmo título do álbum do artista Phil que eu, acidentalmente (não sei se posso assim definir), conheci em um desses dias, e que quero terminar essa minha reflexão sobre as transformações: “Escolhas tão difíceis de fazer / A indecisão faz parte do meu ser / A nossa dor não passa na tevê / E a escuridão me trouxe o renascer...” Até a próxima.

KAFKA, Franz. A metamorfose. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2025.

 

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

MUITO MAIOR QUE O MUNDO

Crédito: Cup of Couple (PEXELS)

 

Eu não me importo que a sorte

Possa mudar num segundo

Que algumas forças me puxem

Bem direto para o fundo

Minha força de vontade

É muito maior que o mundo.


Muito embora tanta gente

Pratique seu jogo imundo

Destilando o cru veneno

Com um ódio tão profundo

O amor que trago comigo

É muito maior que o mundo.


Se por este mundo afora

Nasce o mal em chão fecundo

Enquanto parece o bem

Cada vez mais moribundo

A bondade que eu carrego

É muito maior que o mundo.


Quando o falso testemunho

Dos perversos oriundo

Tentar manchar o meu nome

Como eu fosse vagabundo

A certeza de quem sou

É muito maior que o mundo.


Quando a voz da violência

Crer em vão que me confundo

Entre a justiça e a vingança

E em mar de sangue me afundo

A paz que eu trago no peito

É muito maior que o mundo.


Quando a maré de desgraças

Faz daqui um submundo

Das águas de ricas bênçãos

A minha vida eu inundo

A gratidão que eu conservo

É muito maior que o mundo.


Se deposito a semente

Mas o solo é infecundo

Eu cavo incansavelmente

No terreno me aprofundo

A minha dedicação

É muito maior que o mundo.


Se o cheiro da intolerância

Exala nauseabundo

O perfume da concórdia

Ao meu redor eu difundo

O respeito que eu demonstro

É muito maior que o mundo. 


Se pregam a divisão

Com discurso furibundo

Eu levanto a minha voz

Com argumento facundo

Meu desejo de união 

É muito maior que o mundo.


Quando o mundo se comporta

Sob motivo tão infundo

Eu mantenho os meus princípios

Dos exemplos me circundo

Pois a minha integridade

É muito maior que o mundo. 


quarta-feira, 12 de novembro de 2025

TRANS-LUCIDEZ

Crédito: Petr Ganaj (PEXELS)

 

O interno olha para a parede gelo do quarto

Um enorme jacaré desce a deslizar

O paciente pisca os olhos...

O réptil ainda está lá

Acenando a exuberante cauda

Num cumprimento íntimo.

Em desespero ele grita:

“- Saia daqui!”

Ao passo que o fabuloso animal

Responde com toda a naturalidade

“- Não adianta resistir. Você não existe!”

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

O JULGAMENTO IMPLACÁVEL DA CONSCIÊNCIA

Crédito: Foro3D.com


 “O sofrimento e a dor são sempre obrigatórios para uma consciência ampla e para um coração profundo”.

                 Sejam muito bem-vindos, caríssimos leitores. Mais uma vez estamos nós aqui, prontos para decolar nessa impávida aeronave chamada literatura. Vamos partir agora mesmo, despedindo-nos, sem delongas, da França com todo o seu glamour, para partir para a distante e colossal Mãe Rússia. Isso mesmo, companheiros e companheiras de viagem. Hoje vamos cruzar os ares para chegarmos, enfim, à imponente nação que está situada nos limites do continente europeu, invadindo Ásia adentro. Podemos, mais uma vez, acessarmos a nossa “playlist” de viagens e tocar a música “Destruição” de Brayan Arantes, parte da trilha sonora do filme “Crime e castigo” de 2002, dirigido por Menahem Golan, pois existem algumas outras versões.

                Aterrissemos, finalmente, na bela São Petersburgo, fundada em 1703, pelo czar Pedro, o grande. Aliás, dizem que sua intenção ao criar a cidade, que chegou a ser capital imperial, era de dar ares de civilização europeia à sua nação. Mas deixemos a história de lado para voltarmos ao nosso itinerário. Aqui vamos encontrar o nosso protagonista: o jovem Raskolnikov. Sinto muito, meu caro leitor, mas os russos raramente possuem nomes mais simples que esse. Ele é um ex-estudante de Direito que, devido a necessidades mais básicas (no caso a sobrevivência da espécie) para não dizer elementares, foi forçado a abandonar seus estudos. Assim sendo, este jovem passa por grandes dificuldades, em um considerável grau de pobreza.

                Angustiado com a própria situação, busca uma forma de realizar algo importante, alguma maneira de superar a miséria em que vive, sem grandes perspectivas. Nosso “herói” – fazendo uma pequena referência aos protagonistas dos romances românticos – (desculpe meu arroubo de ironia) carrega consigo uma pequena teoria que busca colocar à prova; a divisão dos homens em dois tipos: ordinários e extraordinários, sendo estes últimos aqueles a quem a sociedade livra de seus horrendos crimes porque suas ações foram maiores que a ética de um povo, por isso sempre tem em mente uma lista de grandes assassinos perdoados pela História. Dessa forma, ele tentará provar sua superioridade moral.

                Agora o caro leitor deve estar se perguntando: “De que forma ele fará isso?” Ora, meu caro, eu estou aqui para responder a você. Ele irá cometer um crime do qual acredita sair ileso. Raskolnikov vive de aluguel em um quarto pertencente a uma agiota. Nenhum dos meus leitores seria inocente o suficiente para não imaginar que pedir dinheiro emprestado a ela será nada mais que uma questão de tempo. Também não haverá nenhuma dificuldade em imaginar que ele não conseguirá pagar sua dívida com ela. Estamos nos aproximando de nosso conflito principal (lembrando que todo romance necessita – e muito – de um conflito). Nosso personagem começa a nutrir certo ódio pela senhora que ele julga uma péssima influência, além de testemunhar que a mesma maltrata a própria irmã. Cabe aqui lembrar que o agiota sempre foi uma “persona non grata” na literatura. Basta recordar do onzeneiro (por causa da taxa de juros a 11%), personagem icônico do “Auto da barca do inferno”, de autoria do imperdoável crítico Gil Vicente, o qual chega ao juízo final munido de uma mala abarrotada de dinheiro.

                Seguindo tal raciocínio, Raskolnikov entende que dar um fim a ela seria um grande favor a humanidade, como um crime justificável, partindo da famosa máxima de Maquiavel: “os fins justificam os meios”. Ele vende tudo que pode para honrar seus compromissos, porém continua devendo a ela, entrando em profundo desespero. Cada vez mais a morte dela parece ser o único caminho para trazer a solução aos seus problemas. Eis que após planejar meticulosamente tal assassinato, ele enfim o comete, a sangue frio. Contudo, não contava com a presença da irmã da vítima que acaba o surpreendendo e virando uma testemunha. Portanto, ela não pode sobreviver. Aqui o protagonista comete mais um assassinato, desta vez, pelo mais instintivo impulso. Acabamos de chegar à primeira parte do título do livro: crime.

                Após matar as duas irmãs e apropriar-se das inúmeras joias que a agiota tinha em seu poder, o jovem parece finalmente resolver os seus problemas financeiros. Entretanto, passará a ser perseguido por um caçador implacável: a consciência. A morte da irmã (para ele uma vítima da outra) faz cair sobre ele um grande pesar. Agora, caro leitor, chegamos à segunda parte do título: castigo. Nosso personagem acaba tendo febres e delírios, sendo atingido pelo golpe duro do remorso, condição que piora quando descobre que a policia achou um bode expiatório para levar a culpa, ou seja, um inocente irá pagar pelo crime em seu lugar. Nessa hora, desfazem-se todas as suas certezas e teses anteriores. Isto tudo me lembra muito bem do personagem Luís da obra “Angústia” do fantástico Graciliano Ramos, personagem que descobre, após matar um rival, que aquilo que ele considerava como um ato de justiça, na verdade não passou de simples vingança, sendo corroído pelo remorso ao longo do livro. Fico aqui pensando: seria apenas uma feliz coincidência literária ou teria Graciliano Ramos conhecido Dostoievsky?

                Caro leitor, mergulhamos, agora, em nossa realidade, claramente estampada nesse romance, que muito tem a explorar do ser humano. A grande pergunta que ele nos faz é: todo crime merece um castigo? Raskolnikov representa tantos seres humanos, espalhados por esse mundo sem fim, anônimos, sem voz, sem rosto, sem vez que, sucumbidos por um desejo pessoal, criam uma pseudojustiça, caindo na tentação de ser juiz e executor das próprias sentenças, como nos versos da música “Desordem” da banda nacional Titãs: “Não sei se existe mais justiça / Nem quando é pelas próprias mãos”, conduzindo-os ao abismo. Tantos homens e mulheres como os personagens de Dostoievsky e Graciliano acham que podem ser juízes e algozes, ao mesmo tempo, prestando o serviço de defender a sociedade, situação explorada (muito bem – diga-se de passagem) pelo núcleo de heróis urbanos da Marvel, com destaque para o Demolidor, tratando da tênue linha que separa o herói do justiceiro.

                Esse livro explora a relação do individuo com a sociedade que o cerca, como uma complexa teia na qual todos nós estamos enredados. Nosso protagonista só vai perceber isso depois de consumado o seu “ato de justiça” e será engolido pelo binômio causa e consequência, defendido exaustivamente pelos escritores realistas e naturalistas, como já pudemos presenciar em “Madame Bovary”. Raskolnikov chega até a pensar na ideia de que se é possível atingir a salvação por meio do sofrimento, como a questão das punições e até mesmo das penitências religiosas que visam à purificação, o que nos leva a precipícios ainda mais fundos como a estrutura do sistema prisional e a defesa da pena de morte.      

                Ah, caro amigo leitor, este livro me trouxe muitas indagações e, para falar a verdade, quase nenhuma resposta. Até porque, muitas vezes, são as indagações que fazemos que realmente nos norteiam perante nossos rumos. No entanto, deixo como presente de despedida, a frase do filósofo Spinoza, na intenção de que possa nos trazer algum alento ou uma direção: “Diante do drama da vida, não se deve chorar nem se desesperar, muito menos odiar. Necessita-se somente compreender”. Que a compreensão, caro leitor, possa nos conduzir pela grande estrada da vida. Até a próxima.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Editora 34, 2016.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

NÃO DEIXE DE ACREDITAR

Crédito: Dima Valkov (PEXELS)

Mesmo que te seja a vida

Tão difícil caminhar

E a estrada longa demais

Para ao fim poder chegar

Comece com um só passo

Não deixe de acreditar.

 

Quando num mar de problemas

Você teme se afogar

E a tábua de salvação

Impossível de alcançar

Nade com todas as forças

Não deixe de acreditar.

 

Quando a escuridão da noite

Começa a te sufocar

Coração envolto em trevas

Nada podendo enxergar

Espere o raiar do sol

Não deixe de acreditar.

 

Mesmo que o mundo ao redor

Contra você conspirar

Tentar roubar sua paz

E a sua fé machucar

Encontre o seu equilíbrio

Não deixe de acreditar.

 

Caso o vírus da mentira

Queira te contaminar

Dizendo que o importante

É você se aproveitar

Defenda sempre a verdade

Não deixe de acreditar.

 

Se o mundo te menospreza

Para baixo a te jogar

Dizendo que nada pode

Que é inútil se tentar

Mostre a ele a tua força

Não deixe de acreditar.

 

Se a vida parece curta

Pra tanto realizar

E o tempo tal qual ladrão

Seus momentos quer roubar

Aproveita a cada instante

Não deixe de acreditar.

 

Quando a voz da solidão

Pertinho te sussurrar

Que não tem ninguém contigo

Para ao teu lado ficar

Ninguém nunca está sozinho

Não deixe de acreditar.

 

Se o mal parecer eterno

Pronto pra te devorar

Forçando tua desistência

Pois é inútil lutar

Sinta a chama da bondade

Não deixe de acreditar.

 

Se a morte ronda teus passos

Insistindo em explicar

Que a tua hora chegou

Que não há nada a tentar

Cada vida é um milagre

Não deixe de acreditar. 

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

CERIMONIAL

Crédito: Emmanuel (PEXELS)

Faz-se noite agora no fim do mundo

Do cume das montanhas rochosas

Pairam imponentes obeliscos moldados a mãos divinas...

 

Uma legião de horrendos elementais

Cavalga indomáveis e selvagens tornados...

O trote desgovernado dos fogosos corcéis

Precipita-se adiante a conduzir almas

Rumo à escuridão do abismo do esquecimento

 

A profunda garganta negra permanece escancarada

À espera, faminta por novos sacrifícios.

O som característico do desespero

Em breve abafado pelas trevas opressoras.

 

Cada prece reduz-se ao silêncio

E num passo de segundos

A paisagem recupera seu marasmo

Pronta para o próximo holocausto.

terça-feira, 4 de novembro de 2025

O VALE DOS SENTIMENTOS (NOVEMBRO 2025)

Crédito: Arnaldo Júnior

 TEMA

Muitos são os contos antigos que nos chegam, difundidos em diversas versões, que tratam sobre lições de valor. Claro que encontramos uma boa parte deles cuja abordagem assemelha-se ao tom moralizante das fábulas, mas, por outro lado, muitas são as histórias que nos encantam, em especial aquelas que trabalham com as analogias, utilizando-se do mesmo expediente das parábolas: o de transformar toda e qualquer abstração em elementos concretos.  Dentre esses contos, li há muito tempo atrás uma versão (pois existem tantas e tão interessantes) de “O vale dos sentimentos”, de autoria desconhecida, em uma revistinha da Turma da Mônica e fiquei encantado. Tantos anos depois, não resisti à tentação de adaptar para o cordel essa história, que ainda trago nítida na minha lembrança de leitor, criando também a minha versão.

SINOPSE

Em um lugar distante de nossa realidade, existe um maravilhoso vale e, no seio desse vale, há uma pequena e charmosa vila, com casinhas coloridas, cada uma decorada à sua maneira. Apesar de parecer um lugar como qualquer outro, o que faz desse local extraordinário é o fato de que nele vivem reunidos todos os sentimentos em um clima de harmonia mesmo com as diferenças entre eles. No centro do vale, vive o mais importante dos sentimentos. Num belo dia de sol, a raiva, único sentimento a morar sozinha e isolada dos demais, está elaborando mais um de seus planos maléficos ao preparar uma poção muito poderosa e assustadora que se precipita sobre o vale. Não perca essa bela analogia ao comportamento humano, adaptada para o cordel de um conto antigo e de origem desconhecida.

A história que agora conto

É antiga de verdade,

Lá do começo dos tempos

Por volta da antiguidade.

Vem de uma longínqua época

Bem antes da humanidade.

 

Bastante longe daqui.

Muito, mas muito distante,

Em um canto deste mundo,

Sem mais terras adiante,

Existia em segredo

Um lugar interessante.

 

Lá onde o grande oceano

Acaba numa montanha.

Era um gigante maciço

De uma altitude tamanha

Que guardava um belo bosque

No fundo de sua entranha.

 

Um campo de vivo verde

Se estendia como um manto

Por cada palmo de terra,

Encobrindo a todo canto,

Como o mais nobre tecido

Fiado qual por encanto.

 

Logo após um grande vale,

Por todos lados florido.

Ao fundo uma cachoeira,

Um lago bem colorido

Que abrigava no seu centro

Um reino desconhecido.

PRESENTE

Crédito: Cottonbro Studio (PEXELS)   Corre, meu jovem, não demora! A eternidade é ouro de tolo O tempo foge ao mais suave toque dos seu...