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“É bom quando nossa consciência sofre grandes
ferimentos, pois isso a torna mais sensível a cada estímulo”.
Situamo-nos
no ano de 1915, embora o livro, segundo o que me contaram, foi escrito em 1912
(num espaço de apenas vinte dias). Mas isto é outra história e que pode
retardar nosso avanço em direção ao nosso protagonista: Gregor Samsa, um
caixeiro-viajante (uma profissão tão antiga quanto o próprio nome sugere ser)
que trabalha em um emprego do qual não gosta, mas que foi a forma encontrada
por ele para pagar a dívida de seus pais (razão principal por se entregar a uma
atividade que detesta). Gregor é o que os mais velhos chamam de arrimo de família,
já que seu esforço (e só o dele) sustenta o pai, a mãe e a irmã.
Mal
temos tempo de conhecê-lo e, eis que o conflito cai como uma bomba sobre nossas
cabeças. Nosso herói acorda sentindo-se estranho e, qual não é a sua surpresa
(para não dizer espanto ou até mesmo desespero) para não dizer também de nós,
leitores, quando ele descobre que se transformou em um inseto gigante, que se
costumou definir por uma barata, como na música “Uma barata chamada Kafka”, da
banda Inimigos do Rei, lá pelos anos 90, mas que em nenhum momento foi
claramente determinado pelo narrador. Inclusive, trata-se de algo tão insólito
que nem se faz a mínima ideia de como tal fato aconteceu. Mais inimaginável
ainda, meu caro leitor, é a primeira grande preocupação de Gregor: ele não terá
como trabalhar e poderá perder o emprego.
Não
demora a que o gerente do armazém em que ele é funcionário venha verificar o
que aconteceu. Não se trata de uma preocupação com o funcionário, mas com o
prejuízo que tal ausência possa acarretar ao seu lucro. Até para convencer-se
de que realmente ele não estava apto a trabalhar. Porém este é o menor dos
problemas: a transformação (metamorfose) de Gregor vai provocar um efeito
cascata sobre sua família, pois, agora, ele não pode sustentá-los, o que vai
influenciar de forma direta na rotina da casa. Seu pai agora terá de voltar ao
trabalho. Sua família vai deixá-lo isolado no quarto para que não sejam
obrigados a ver a criatura repugnante que ele se tornou. Todos dependiam dele
e, agora, em uma reviravolta, ele passa a depender deles para as tarefas mais
simples. Gregor conta com a compreensão somente da irmã, que ainda nutre por
ele alguma afeição.
O
pai passa a trabalhar, mas como se observa, nem tira o uniforme para dormir,
como se fizesse parte dele. Surgem novos inquilinos para alugarem quartos na
casa. Por isso, Gregor não pode sair de seu quarto, coisa que acontece certo
dia, assustando a todos eles e pondo fim ao contrato, o que acaba por ocasionar
o ódio de sua irmã. Ele agora se tornou um fardo para a família, alguém que
ninguém conseguia mais encarar, dirigir o olhar por poucos segundos. Era uma
verdadeira aberração. Todos desejam a sua morte. Para que ele pare de sofrer?
Infelizmente não, caro leitor, mas para o fim do sofrimento deles. Gregor não
era mais o esteio da família, portanto, não tinha mais qualquer utilidade.
Ao
sofrer a metamorfose, ele só pensava no seu trabalho, que ele mesmo confessara
detestar, por saber que ele era o sustento de todos, aliás, só concordou em
trabalhar pensando em sua família. Também temos outro lado: aquele trabalho era
a única coisa que fazia, portanto era o que o definia de certa forma. Ficar sem
ele seria como perder sua identidade, como se pode observar na música do
Gonzaguinha: “Seu sonho é sua vida / E a vida é trabalho / E sem o seu trabalho
/ Um homem não tem honra...” Pergunto a você, amigo leitor, quantas pessoas por
aí você conhece que, ao serem interrogadas sobre quem são ou o que fazem,
respondem prontamente com sua profissão. Se nunca o fez, faça o teste. Mas, ao
mesmo tempo, o trabalho que o identificava era a atividade que o
descaracterizava como ser humano. Parece um tanto paradoxo, não é? Para alguns,
impossível de se imaginar...
É
aqui que o sagaz Kafka queria chegar: o processo de desumanização do ser
humano, a perda de sua essência, de sua sensibilidade. A rotina que absorve o
homem como uma areia movediça invisível, destituindo-o de suas , digamos,
humanidades. Ele começa a perder aquilo que o difere dos demais seres: segue regredindo,
transformando seus possíveis talentos em meros instintos. É dessa metamorfose
que o livro nos fala: de uma família preocupada não com a perda do ente
querido, mas da fonte de renda, do gerente preocupado não com a perda do
companheiro de trabalho, mas da mão de obra. É o homem que se despe de sua
humanidade e, por consequência, de sua dignidade.
Vemos
aqui o absurdo da condição humana, da alienação, que acaba por tornar o homem
uma besta-fera, como tão bem exemplificado no livro “Vidas secas” de Graciliano
Ramos. O que liga o vaqueiro Fabiano, no sertão das Alagoas, ao Gregor do
Império Austro-Húngaro? O processo de animalização do homem, o qual passa a ser
tratado como um bicho qualquer. E isso tudo, por quê? Porque nossa
individualidade, aquele bem precioso, entra em conflito com os padrões sociais
determinados sabe-se lá por quem.
Vivemos
em um mundo, caro amigo leitor, em que as mortes deixam de referir-se às
pessoas para tornarem-se números, meras estatísticas. Os acidentes e tragédias
já parecem ter tomado o lugar comum e muitos chegam a citar vários deles como
simples dados. A matéria passou a falar mais alto e o dinheiro que era para ser
um meio de subsistência, agora é o objetivo de muitos. E o que fazer com tanto
dinheiro? Ora, comprar, comprar e comprar. Ter é o verbo que substitui o ser na
definição da essência humana hodierna. Pergunta-se, com frequência, quantos
seguidores um artista ou celebridade tem, afinal, nas redes sociais, mas
raramente se busca saber quem ele é, na verdade. Que valores ele segue? Sua
personalidade pode ser traduzida entre curtidas, visualizações e seguidores...
Quero
terminar aqui, amigo leitor, deixando a simbólica imagem da metamorfose da
borboleta, aquela já muito discutida e usada em nossa literatura (e não é à
toa) por trazer ricos significados sobre a evolução e a superação, descrita nas
palavras da canção “Metamorfose”, mesmo título do álbum do artista Phil que eu,
acidentalmente (não sei se posso assim definir), conheci em um desses dias, e
que quero terminar essa minha reflexão sobre as transformações: “Escolhas tão
difíceis de fazer / A indecisão faz parte do meu ser / A nossa dor não passa na
tevê / E a escuridão me trouxe o renascer...” Até a próxima.
KAFKA, Franz. A metamorfose. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2025.

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