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| Crédito: David Kanigan (PEXELS) |
Hoje, por falta de um protagonista, teremos, na verdade, quatro deles em nossa narrativa. Comecemos pelo principal: Tomas, um cirurgião, intelectual, solteiro convicto, que faz das mulheres a sua grande e única diversão; um verdadeiro seguidor do lema “carpe diem”. Assim, ele segue sua vida até que, num certo dia, seus olhos encontram os olhos de Tereza: uma garçonete de olhar infantil e de alma frágil. Após essa colisão de olhares, ambos se enlaçam, pois Tereza, de natureza ciumenta, reflexo de sua insegurança, pretende tomá-lo somente para si. Porém, já é de se esperar que seja um tanto quanto difícil para Tomas refrear seus instintos e desejos por outras mulheres e que, para ele, quebrar os grilhões da monogamia seja apenas uma questão de tempo e de oportunidade.
É
agora que introduzo ao amigo leitor, Sabina: uma mulher notável, uma artista
transgressora, figura arrebatadora que, diferentemente de Tereza, age conforme
as próprias crenças, tendo, como única lei, a liberdade, pouco ou nada se
importando com a visão que a sociedade dela venha a fazer. Eis a amante
perfeita para o nosso Don Juan em questão. Inicia-se, dessa forma, um triângulo
amoroso. De uma certa maneira, as duas mulheres na vida de Tomas passam a
representar o peso (Tereza) da mulher individual e idealista que se prende ao
casamento como um náufrago a sua tábua de salvação; e a leveza (Sabina) da
mulher que não se agarra a absolutamente nada, vivendo um dia de cada vez. Eis,
querido leitor, a grande e a maior das dualidades que premeiam tal enredo.
Não
menos importante – aliás, totalmente intencional – ao meu modo ver, é o período
histórico em que as personagens situam-se: a Guerra Fria. A União Soviética
(aqui vai mais um bolo a ser fatiado no futuro, com generosas porções) invade e
domina a Tchecoslováquia como um território. Assim sendo, a liberdade passa a
ser uma constante nas discussões e reflexões das pessoas, o que não seria
diferente para os nossos personagens. Como consequência, Sabina sente-se
sufocada pelo fardo da opressão e vai para Genebra para respirar ares mais
leves e descontraídos. Tomas e Tereza, um pouco mais tarde, veem-se obrigados a
mudar-se para a Suíça devido a problemas que ele enfrenta com a censura por
causa de um artigo escrito.
Lá, o triângulo volta a ser constituído,
porém, agora, teremos a formação de um quadrilátero com o surgimento do quarto
protagonista pelo qual o leitor já deveria estar esperando: Franz, um homem que
costuma refugiar-se em seu próprio intelecto para não se apegar a ninguém; mas
que, como Tomas, acaba atingido pelo turbilhão que é Sabina. Assim como Tereza,
Franz vê na relação amorosa uma zona de conforto, uma espécie de refúgio em que
possa se abrigar do mundo. O leitor deve ter percebido que dentro da dicotomia
proposta pelo autor, Tereza e Franz situam-se numa margem; Tomas e Sabina, na
margem oposta.
Este livro, caro leitor, tem de
tudo um pouco: filosofia, história, amor, arte, entre tantas outras discussões,
pois é dessa matéria que são feitos os clássicos: a infinidade de temas que
trazem consigo jamais terão suas discussões encerradas e, com nosso sagaz Milan
Kundera não será diferente. Assim como foi com Kafka, Dostoievski e outros que
já passaram por aqui, sua obra é uma fonte inesgotável de reflexões acerca
dessa nossa vida.
Os dois célebres casais desse
romance partem em busca de um sentido para as suas vidas (atitude comum entre
os meros mortais), cada um à sua maneira, usando o amor como possível medida. Tomas
tenta fazer Tereza feliz, contudo não consegue ir contra a própria natureza,
lembrando-me do naturalismo que procura compreender o comportamento do
protagonista no livro “O crime do Padre Amaro” de Eça de Queirós. Por outro
lado, cabe-nos lembrar aqui a frase eternizada em “O pequeno príncipe”: “Tu te
tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Por isso, o autor
utiliza-se desse sentimento para demonstrar a tentativa das personagens de
encontrarem uma referência como norte.
Este livro fala, acima de tudo,
sobre as escolhas que temos de fazer em todos os momentos de nossas vidas, como
na frase do livro que abre nossa viagem de hoje. Elas fazem de nós o que somos
e, como diria Fernando Pessoa: “Quem escreverá a história do que poderia ter
sido o irreparável do meu passado; Este é o cadáver. Se a certa altura eu
tivesse me voltado para a esquerda, ao invés que para direita; Se em certo
momento eu tivesse dito não, ao invés que sim; Se em certas conversas eu
tivesse dito as frases que só hoje elaboro; Seria outro hoje, e talvez o
universo inteiro seria insensivelmente levado a ser outro também." Não é
possível voltar, caro leitor, nem imaginar como seria. O que vale é sempre o
agora e, a partir dele, não há hipótese para o passado.
Após
ler esse livro, fica-se a pensar: estamos condenados, presos para todo o sempre
a essa tal dualidade? A vida nos
apresenta dois caminhos a seguir. Como revela aquela canção de Lulu Santos:
“Não existiria som / Se não houvesse o silêncio / Não haveria luz / Se não
fosse a escuridão / A vida é mesmo assim / Dia e noite, não e sim”, provando
que a dualidade faz parte de nossa natureza, como mais à frente ainda completa:
“Nós somos medo e desejo / Somos feitos de silêncio e som”. Tereza e Franz
escolheram o fardo do peso, presos com os pés no chão, abraçaram-se às rotinas
e aos velhos caminhos, para eles seguros; enquanto Tomas e Sabina optaram pela
leveza do ar, soltos a voar, buscando na liberdade o verdadeiro sentido para suas
vidas.
Agora,
eu te convido, caro leitor, a pensar um pouco mais aqui comigo: e se, lá no
fundo, Kundera quisesse nos dizer, por trás de tudo isso, por entre os
extremismos da repressão e da libertinagem, que a solução é buscar o
equilíbrio, que você não precisa necessariamente escolher entre um e outro, como
diziam os antigos “Nem tanto ao céu, nem tanto à terra”, ditado que dizem ter
sido inspirado no mito do voo de Ícaro (pena que nos falta tempo para explorar),
contido na história do Minotauro. O que se deve fazer é buscar o comedimento, o
que me faz lembrar do médico e físico suíço Paracelso (séc. XVI) cuja célebre
frase uso para encerar esse artigo: “A diferença entre o veneno e o antídoto
está na dose”. Até a próxima.

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