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| Crédito: Foro3D.com |
“A harmonia do corpo e da alma... Nós, na nossa
cegueira, separamos estas duas coisas para inventar um realismo vulgar e uma
idealidade vazia!”
Estamos chegando ao exato momento em que o sensível
artista, o pintor Basil Hallward está dando início a uma nova obra de arte,
utilizando-se de Dorian Gray, seu nobre anfitrião, como modelo de corpo inteiro
para a tela que o pintor considera ser um novo conceito de arte. Dorian é um
jovem, dono de uma beleza estonteante, a qual chama a atenção de qualquer
pessoa que o avista. É aí que entre em cena o amigo do pintor, Lord Henry, um
aristocrata que adora emitir sua opinião sobre os mais diversos assuntos, que
não deixa de reparar na beleza incomum do jovem rapaz. Como boa parte dos
jovens, ainda em processo de formação acerca de sua condição perante o mundo,
Dorian é uma pessoa facilmente influenciável, além do mais perante um homem
experiente e vivido como Lord Henry.
O
tema principal da conversa entre os três acaba sendo a beleza e a juventude
como uma combinação perfeita que oferece ao seu detentor um passaporte
irrecusável para adentrar aos mais diversos prazeres que o mundo pode oferecer.
Prazeres estes que não estão ao alcance de todos, porém totalmente possível ao
jovem Dorian. Durante o diálogo, ele começa a vislumbrar um novo mundo de
possibilidades e, convencido pelos dois homens de sua magnífica beleza, teme
que esta um dia simplesmente desapareça, verdade mais do que certa, não é, caro
leitor? Afinal, se tem alguém que jamais mente, esse é o tempo.
Diante
de tal temor, ele faz um desejo, do fundo de sua alma: que o quadro possa
envelhecer no seu lugar, para que ele conserve sua beleza para sempre.
Pergunto, agora, a você: quem nunca teve um desejo assim, mesmo que passageiro,
um dia, olhando o próprio retrato? Contudo, o desejo do jovem não teve nada de
superficial ou momentâneo. Não, meu caro. Atrevo-me a dizer que o pobre rapaz
jamais desejou algo assim, com tamanha intensidade. Nesse momento, acredito que
inconscientemente, Dorian firma um pacto. Isso mesmo, eu não me enganei não. A
partir de agora, que a tela de Basil absorva toda a passagem do tempo no lugar
do belo corpo dele. Gostaria de fazer um aparte: a palavra pacto significa
acordo entre duas partes. Nesse momento você pode estar imaginando: “Quem seria
a outra parte no acordo com Dorian?”. Ah! Caro leitor, nem tudo o livro nos
responde..., mas eu e você podemos imaginar que não se resume a alguém (ou algo)
com boas intenções, não é? Até porque, nas narrativas, sejam elas populares ou
clássicas, a palavra pacto acaba por referir-se, no fim das contas, a alguma
entidade de natureza demoníaca.
A partir de então, Dorian passa a curtir a vida
intensamente, em seu mais pleno significado, desfrutando da dádiva (ou
maldição) de não envelhecer nunca, um só dia ao menos. É quando conhece Sibyl
Vane, uma atriz shakespeariana que se apresenta em um teatro de aspecto um
tanto quanto sombrio. Ela, que só tivera olhos para a carreira e para o palco
durante toda a sua vida, agora vê desabrochar o amor por alguém: o “príncipe
formoso”, como ela costumava chamá-lo. Ele corresponde ao seu amor, porém, em
uma primeira oportunidade, quando ela faz a escolha pelo amor do jovem,
desistindo de sua carreira, por entender que não havia espaço para duas paixões
tão intensas, ele a despreza e a humilha, alegando que a sua atuação era a
beleza que ele via nela. Extremamente cruel, Dorian sai da vida de Sibyl. Ao
chegar a sua casa, observa o quadro e, para sua surpresa, percebe nele um sutil
sorriso e crueldade. Sim, caro leitor, para nossa surpresa, o quadro não só
absorvia o envelhecimento do jovem, mas também todos os seus pecados,
isentando-o de qualquer consciência moral. Mais tarde, num raro arrebato de
arrependimento, ele tenta retomar seu relacionamento com a atriz quando recebe
a notícia de que ela havia cometido suicídio, tomando uma espécie de ácido. A
partir de agora, o jovem pautará sua vida somente pela luxúria, no mundo das
aparências, em uma vida puramente libertina.
Disse
Chaplin: “A beleza é a única coisa preciosa na vida. É difícil encontrá-la, mas
quem consegue descobre tudo”. Vindo de um homem cuja arte, sensível e
inteligente, encantou a gerações (e continua encantando) não pode tratar-se de
um engano. Acho que não. Creio que o equívoco reside justamente na
interpretação sobre o conceito de beleza. Eis nosso ponto de partida de hoje: a
que beleza se referia Chaplin? Seria a mesma que Dorian quis conservar consigo? Antes de tudo, gostaria e salientar ao leitor
que não sou, de forma alguma, contra a beleza. Jamais. O que quero colocar em
evidência é a importância que se dá a ela em nossa sociedade e,
consequentemente, como ela se faz presente.
O
personagem Lord Henry é uma alegoria do hedonismo que, em poucas palavras, é
uma filosofia de vida que defende o prazer como o bem supremo, portanto, uma
finalidade que não possui um código de ética, não se prendendo a moral alguma.
É o que passa a viver o jovem Dorian de forma totalmente desenfreada. Dessa maneira,
vai passando como um verdadeiro rolo compressor sobre os sentimentos das moças
com que encontra. Cada comportamento tenebroso vai sendo absorvido pelo quadro,
que vai tomando uma aparência horrenda, tornando-se um retrato fiel da alma de
Dorian. Com o passar do tempo, o rapaz já não consegue mais encarar sua face na
pintura, escondendo-a em um quarto de sua casa, como quem não pode mais encarar
a si mesmo.
Quando a busca pelo prazer passa a
ignorar qualquer diretriz, viver torna-se uma aventura perigosa. E o que isso
tem a ver com a beleza? Na verdade, tudo. Aqui falo de uma beleza unicamente
externa. Aparência e nada mais. Aquela beleza que, de um entre outros atributos,
passou a meta exclusiva. Aquela mesma que acabou fazendo o pobre Narciso (mito
grego indispensável para esta reflexão) apaixonar-se por si mesmo a ponto de
perder a própria vida na beira do lago. Ah! Que mito tão cruel e ao mesmo tempo
tão real! É por isso que existe o termo “narcisista” que faz todo o sentido
aqui.
Vivemos
uma nova ditadura: a ditadura da beleza, difundida por redes sociais,
aplicativos diversos, programas de televisão e pseudocelebridades. Presenciamos
a época do corpo perfeito e sarado, das medidas enxutas e exatas, das meninas
que sonham em ter o corpo da boneca Barbie (e por que não também loiras e de
cabelo liso?). Assistimos ainda a um momento em que as pessoas querem alcançar
o “padrão de beleza” (que sempre achei ser um valor subjetivo) a todo e
qualquer custo, inclusive, alguns, movidos pelo desespero inconsciente, buscam
por soluções mágicas (procedimentos cirúrgicos e fórmulas mirabolantes) – cabe
aqui lamentar, com grande pesar, as tantas mulheres que perderam suas vidas
fazendo lipoaspiração ou comprometeram sua saúde colocando próteses de algum
tipo. Existe até uma doença catalogada como síndrome de Dorian Gray, em que a
pessoa tem medo de envelhecer por causa da aparência (conheço tanta gente que
oculta a própria idade – só não entendo o sentido).
O
sagaz leitor e a atenta leitora que me acompanham já devem imaginar que a trilha
escolhida por nosso protagonista irá conduzi-lo a um final tão trágico quanto
ao do jovem grego citado anteriormente. Infelizmente ou não, cumprindo minha
regra de ouro, não revelarei o final. Terá de ler o romance. Mas, agora,
voltando-se ao autor: Oscar Wilde, em sua obra, faz uma pergunta a nós,
leitores: “Existe um limite na busca pelo belo?” Em seu pacto, Dorian pagou
pela beleza eterna com a sua própria alma. Ele trocou tudo que tinha para ficar
somente com ela. Em um mundo de selfies e posts, curtidas e likes, o narcisismo
encontra-se em um farto banquete, em uma longa mesa, onde tantos tomam seus
lugares, tendo a vaidade como prato principal.
Assim termino minha reflexão com um trecho da canção do inteligente Zeca
Baleiro: “Mundo velho e decadente mundo / Ainda não aprendeu a admirar a beleza
/ A verdadeira beleza, a beleza que põe mesa / E que deita na cama, a beleza de
quem come / A beleza de quem ama / A beleza do erro, do engano, da
imperfeição”. Até a próxima.

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