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| Crédito: Foro3D.com |
“O sofrimento e a dor são sempre obrigatórios para uma consciência ampla e para um coração profundo”.
Aterrissemos,
finalmente, na bela São Petersburgo, fundada em 1703, pelo czar Pedro, o
grande. Aliás, dizem que sua intenção ao criar a cidade, que chegou a ser capital
imperial, era de dar ares de civilização europeia à sua nação. Mas deixemos a
história de lado para voltarmos ao nosso itinerário. Aqui vamos encontrar o
nosso protagonista: o jovem Raskolnikov. Sinto muito, meu caro leitor, mas os
russos raramente possuem nomes mais simples que esse. Ele é um ex-estudante de
Direito que, devido a necessidades mais básicas (no caso a sobrevivência da
espécie) para não dizer elementares, foi forçado a abandonar seus estudos.
Assim sendo, este jovem passa por grandes dificuldades, em um considerável grau
de pobreza.
Angustiado
com a própria situação, busca uma forma de realizar algo importante, alguma
maneira de superar a miséria em que vive, sem grandes perspectivas. Nosso
“herói” – fazendo uma pequena referência aos protagonistas dos romances
românticos – (desculpe meu arroubo de ironia) carrega consigo uma pequena
teoria que busca colocar à prova; a divisão dos homens em dois tipos:
ordinários e extraordinários, sendo estes últimos aqueles a quem a sociedade
livra de seus horrendos crimes porque suas ações foram maiores que a ética de
um povo, por isso sempre tem em mente uma lista de grandes assassinos perdoados
pela História. Dessa forma, ele tentará provar sua superioridade moral.
Agora
o caro leitor deve estar se perguntando: “De que forma ele fará isso?” Ora, meu
caro, eu estou aqui para responder a você. Ele irá cometer um crime do qual
acredita sair ileso. Raskolnikov vive de aluguel em um quarto pertencente a uma
agiota. Nenhum dos meus leitores seria inocente o suficiente para não imaginar
que pedir dinheiro emprestado a ela será nada mais que uma questão de tempo.
Também não haverá nenhuma dificuldade em imaginar que ele não conseguirá pagar
sua dívida com ela. Estamos nos aproximando de nosso conflito principal
(lembrando que todo romance necessita – e muito – de um conflito). Nosso
personagem começa a nutrir certo ódio pela senhora que ele julga uma péssima
influência, além de testemunhar que a mesma maltrata a própria irmã. Cabe aqui
lembrar que o agiota sempre foi uma “persona non grata” na literatura. Basta
recordar do onzeneiro (por causa da taxa de juros a 11%), personagem icônico do
“Auto da barca do inferno”, de autoria do imperdoável crítico Gil Vicente, o
qual chega ao juízo final munido de uma mala abarrotada de dinheiro.
Seguindo
tal raciocínio, Raskolnikov entende que dar um fim a ela seria um grande favor
a humanidade, como um crime justificável, partindo da famosa máxima de
Maquiavel: “os fins justificam os meios”. Ele vende tudo que pode para honrar
seus compromissos, porém continua devendo a ela, entrando em profundo
desespero. Cada vez mais a morte dela parece ser o único caminho para trazer a
solução aos seus problemas. Eis que após planejar meticulosamente tal
assassinato, ele enfim o comete, a sangue frio. Contudo, não contava com a
presença da irmã da vítima que acaba o surpreendendo e virando uma testemunha.
Portanto, ela não pode sobreviver. Aqui o protagonista comete mais um
assassinato, desta vez, pelo mais instintivo impulso. Acabamos de chegar à
primeira parte do título do livro: crime.
Após
matar as duas irmãs e apropriar-se das inúmeras joias que a agiota tinha em seu
poder, o jovem parece finalmente resolver os seus problemas financeiros.
Entretanto, passará a ser perseguido por um caçador implacável: a consciência.
A morte da irmã (para ele uma vítima da outra) faz cair sobre ele um grande
pesar. Agora, caro leitor, chegamos à segunda parte do título: castigo. Nosso
personagem acaba tendo febres e delírios, sendo atingido pelo golpe duro do
remorso, condição que piora quando descobre que a policia achou um bode
expiatório para levar a culpa, ou seja, um inocente irá pagar pelo crime em seu
lugar. Nessa hora, desfazem-se todas as suas certezas e teses anteriores. Isto
tudo me lembra muito bem do personagem Luís da obra “Angústia” do fantástico
Graciliano Ramos, personagem que descobre, após matar um rival, que aquilo que
ele considerava como um ato de justiça, na verdade não passou de simples
vingança, sendo corroído pelo remorso ao longo do livro. Fico aqui pensando:
seria apenas uma feliz coincidência literária ou teria Graciliano Ramos
conhecido Dostoievsky?
Caro
leitor, mergulhamos, agora, em nossa realidade, claramente estampada nesse
romance, que muito tem a explorar do ser humano. A grande pergunta que ele nos
faz é: todo crime merece um castigo? Raskolnikov representa tantos seres
humanos, espalhados por esse mundo sem fim, anônimos, sem voz, sem rosto, sem
vez que, sucumbidos por um desejo pessoal, criam uma pseudojustiça, caindo na
tentação de ser juiz e executor das próprias sentenças, como nos versos da
música “Desordem” da banda nacional Titãs: “Não sei se existe mais justiça /
Nem quando é pelas próprias mãos”, conduzindo-os ao abismo. Tantos homens e
mulheres como os personagens de Dostoievsky e Graciliano acham que podem ser
juízes e algozes, ao mesmo tempo, prestando o serviço de defender a sociedade,
situação explorada (muito bem – diga-se de passagem) pelo núcleo de heróis
urbanos da Marvel, com destaque para o Demolidor, tratando da tênue linha que
separa o herói do justiceiro.
Esse
livro explora a relação do individuo com a sociedade que o cerca, como uma
complexa teia na qual todos nós estamos enredados. Nosso protagonista só vai
perceber isso depois de consumado o seu “ato de justiça” e será engolido pelo
binômio causa e consequência, defendido exaustivamente pelos escritores
realistas e naturalistas, como já pudemos presenciar em “Madame Bovary”.
Raskolnikov chega até a pensar na ideia de que se é possível atingir a salvação
por meio do sofrimento, como a questão das punições e até mesmo das penitências
religiosas que visam à purificação, o que nos leva a precipícios ainda mais
fundos como a estrutura do sistema prisional e a defesa da pena de morte.
Ah,
caro amigo leitor, este livro me trouxe muitas indagações e, para falar a
verdade, quase nenhuma resposta. Até porque, muitas vezes, são as indagações
que fazemos que realmente nos norteiam perante nossos rumos. No entanto, deixo
como presente de despedida, a frase do filósofo Spinoza, na intenção de que
possa nos trazer algum alento ou uma direção: “Diante do drama da vida, não se
deve chorar nem se desesperar, muito menos odiar. Necessita-se somente
compreender”. Que a compreensão, caro leitor, possa nos conduzir pela grande
estrada da vida. Até a próxima.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Editora 34, 2016.

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