![]()  | 
| Crédito: Albert Fourie (PICRYL) | 
“Parecia-lhe que certos lugares na terra deviam produzir felicidade, como uma planta particular ao solo e que cresce mal em outro lugar”.
                Permitam-me
apresentar Emma, uma jovem criada na tranquilidade do campo e educada em um
convento. Seu maior passatempo era a leitura de romances, gênero típico da
época. Nas narrativas, Emma mergulhava de cabeça em enredos que a fizessem
fugir da sua vida, considerada por ela, entediante e sem atrativos. As
aventuras passionais e reviravoltas não tão imprevisíveis faziam com que a
jovem esquecesse um pouco o marasmo em que vivia, expediente semelhante que os
leitores poderão encontrar na obra “O primo Basílio” de Eça de Queiroz.
                Surge,
então, Charles Bovary, um médico interiorano, que acaba por se encantar pela
moça. Ela vê no rapaz uma oportunidade de escapar daquela sua vidinha.
Casamento marcado, esperanças conservadas e, por que não dizer, o nascimento de
altas expectativas quanto ao futuro.  Emma
traz para o novo lar uma bagagem repleta de sonhos: de uma vida de romance
ardente; da paixão como uma chama inextinguível; meras recriações dos tantos
romances que lera escondida.
                Acontece
que Charles não era um homem ambicioso, tampouco tinha consigo uma paixão ou
algum sonho pelo qual valia a pena lutar. Assim, podemos dizer que ele levava
uma vida sem a maior das pretensões ou perspectivas de futuro. Não estava na
profissão que desejava, por isso a dificuldade para terminar o curso e ser
admitido como médico. Com certeza, o caro leitor já deve imaginar que tal união
tenha tudo para fracassar... e que essa velha história de que os opostos se
atraem é tudo conversa fiada, não é? Você não é o único a pensar assim, meu
caro. Não são necessários muitos dias para que Emma perceba que aquela vida de
casada que ela almeja, na verdade, não existe, ao menos no seu caso específico,
como se observa naquela música do Chico Buarque: “Agora era fatal que o faz-de-conta
terminasse assim / Pra lá deste quintal era uma noite que não tem mais fim...”
                Entediada
e tomada pela mesmice (ela tem uma empregada para fazer as tarefas domésticas),
Emma busca alguma forma para preencher seu tempo e sua monotonia com algo que
realmente valha a pena. E aí, caro leitor, acho muito oportuno um ditado das
antigas que diz “Cabeça vazia, oficina do diabo”. Emma resolve tentar viver
aquelas aventuras que ilustravam as narrativas românticas, aquelas pelas quais
tanto ansiava em sua vida a dois. Neste momento, entra em cena um tema antes
nunca citado nos romances: o adultério. Ela passa a encontrar-se com outros
homens, construindo uma vida paralela. Além disso, contrata um estilista para
adquirir novas roupas, para assim poder sentir-se melhor. Resolução essa que
vai gerar uma dívida exorbitante.
                Dentre
seus amantes, um se destaca: Rodolphe, um rico proprietário da região, um
verdadeiro estereótipo do conquistador barato, aquele com suas frases prontas e
os gestos cafonas que transmitem a impressão de um verdadeiro cavalheiro,
lembrando-me imediatamente do personagem Basílio, do livro já citado
anteriormente. Cá entre nós, meu caro leitor, eles parecem a mesma personagem
(podendo ser pura coincidência – ou não), com pouquíssimas diferenças. Emma
parece enfim saciar sua fome de amar e ser amada, como naquela música do
Roberto Carlos: “Nos lençóis macios / Amantes se dão / Travesseiros soltos /
Roupas pelo chão / Braços que se abraçam / Bocas que murmuram...” A vida parece
ter tomado um rumo certo, pelo menos para ela. Sabe aquela sensação de ter a
vida que se pediu a Deus e de que nada poderá dar errado?      
                Mas
cabe a mim a ingrata tarefa de trazer o leitor de volta a terra e pôr os pés no
chão, pois é assim que se procede em um romance realista, do qual Madame Bovary
é o primeiro exemplar, o precursor, o primeiro de muitos que virão a seguir e
que encontrarão grandes autores pelo mundo, como o nosso insuperável Machado de
Assis. Nestes enredos só há uma lei a se seguir: a de causa e consequência e,
dentro desta lei, gosto de lembrar uma das Leis de Murphy: “Se uma coisa pode
dar errado, ela vai dar errado”. Ah! Pobre Emma, embora tenha nascido tantos
anos antes dessa máxima, poderia ter dado ouvidos à voz da prudência. Porém,
cega pelo seu ultrarromantismo (eu já te avisei diversas vezes antes, caro
leitor, que o Romantismo é um perigo) acaba acreditando que poderá fugir do seu
medíocre médico interiorano, aquele homem sem interesses que valeriam a pena,
sem desejos ou luxos, que atendia moribundos o dia todo e que só chegava ao lar
ao fim do dia sem uma história interessante pra contar.
                Ela propõe ao seu amante fugirem
para sempre, para um lugar distante, onde sua vida será um eterno romance,
digno das páginas de um talentoso Alexandre Dumas ou de um Walter Scott, afirmando
que eles podem ser felizes para sempre como nos contos de fada. Contudo ela não
sabe que, para Rodolphe, ela é apenas mais uma. Ele é um homem solteiro, um
aventureiro, sem compromisso algum com alguém. Ela é uma bela distração, mas
não vai colocá-lo para cantar só para ela em uma gaiola de ouro. Ele espera
pela oportunidade perfeita para descartá-la, como já fez com tantas outras. Ao
se dar conta de que seu castelo de areia desmoronou-se de vez: agora sem honra
e endividada, Emma entra em pânico. De volta ao mundo real, ela sabe que para
certas coisas nessa vida não há volta. 
                O
romance realista vem a ser uma reação ao mundo criado pelos românticos e seus
finais felizes. Ele vem apontar o casamento burguês como uma grande ilusão, um
show de aparências. Seus escritores colocam o enlace perfeito em xeque. Pela
primeira vez na literatura, trata-se do cotidiano do matrimônio e de seu fracasso.
Por que nunca se tinha falado de adultério? Já discutimos no nosso livro
anterior que os homens acham que o fato de não se discutir um problema é uma
forma de resolvê-lo, que fingir que ele não existe seja uma ótima estratégia.
Também porque muitos chegavam a ver o adultério como uma alternativa para
provar um pouco daquela paixão que não se tinha no casamento. Cada ideia que se
tem... 
                Mencionando
a frase citada no início do artigo, Emma procura pela felicidade como um
tesouro escondido numa ilha, aquele lugar especial que está distante da nossa
visão, para o qual existe uma palavra mágica que faça abrir a porta. Ela nunca
pensa na possibilidade de construir o seu sonho de futuro, que ser feliz não é
um bilhete de loteria, um prêmio aleatório, mas que é fruto de todo um esforço,
acompanhado do resultado das escolhas que fazemos. Por que não fazer da
felicidade o aqui e agora, transformando o real, em vez de esperar sempre pelo
depois e pelo lá distante. Isso tudo me faz lembrar o final do fantástico
soneto do parnasiano Vicente de Carvalho, sobre a felicidade: “Essa felicidade
que supomos / Árvore milagrosa que sonhamos / Toda arreada de dourados pomos /
Existe, sim: mas nós não a alcançamos / Porque está sempre apenas onde a pomos
/ E nunca a pomos onde nós estamos”. Caro leitor, que cada um de nós possa
encarar a realidade e dela construir nossa real felicidade. Até a próxima. 
