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sexta-feira, 14 de novembro de 2025

MUITO MAIOR QUE O MUNDO

Crédito: Cup of Couple (PEXELS)

 

Eu não me importo que a sorte

Possa mudar num segundo

Que algumas forças me puxem

Bem direto para o fundo

Minha força de vontade

É muito maior que o mundo.


Muito embora tanta gente

Pratique seu jogo imundo

Destilando o cru veneno

Com um ódio tão profundo

O amor que trago comigo

É muito maior que o mundo.


Se por este mundo afora

Nasce o mal em chão fecundo

Enquanto parece o bem

Cada vez mais moribundo

A bondade que eu carrego

É muito maior que o mundo.


Quando o falso testemunho

Dos perversos oriundo

Tentar manchar o meu nome

Como eu fosse vagabundo

A certeza de quem sou

É muito maior que o mundo.


Quando a voz da violência

Crer em vão que me confundo

Entre a justiça e a vingança

E em mar de sangue me afundo

A paz que eu trago no peito

É muito maior que o mundo.


Quando a maré de desgraças

Faz daqui um submundo

Das águas de ricas bênçãos

A minha vida eu inundo

A gratidão que eu conservo

É muito maior que o mundo.


Se deposito a semente

Mas o solo é infecundo

Eu cavo incansavelmente

No terreno me aprofundo

A minha dedicação

É muito maior que o mundo.


Se o cheiro da intolerância

Exala nauseabundo

O perfume da concórdia

Ao meu redor eu difundo

O respeito que eu demonstro

É muito maior que o mundo. 


Se pregam a divisão

Com discurso furibundo

Eu levanto a minha voz

Com argumento facundo

Meu desejo de união 

É muito maior que o mundo.


Quando o mundo se comporta

Sob motivo tão infundo

Eu mantenho os meus princípios

Dos exemplos me circundo

Pois a minha integridade

É muito maior que o mundo. 


quarta-feira, 12 de novembro de 2025

TRANS-LUCIDEZ

Crédito: Petr Ganaj (PEXELS)

 

O interno olha para a parede gelo do quarto

Um enorme jacaré desce a deslizar

O paciente pisca os olhos...

O réptil ainda está lá

Acenando a exuberante cauda

Num cumprimento íntimo.

Em desespero ele grita:

“- Saia daqui!”

Ao passo que o fabuloso animal

Responde com toda a naturalidade

“- Não adianta resistir. Você não existe!”

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

O JULGAMENTO IMPLACÁVEL DA CONSCIÊNCIA

Crédito: Foro3D.com


 “O sofrimento e a dor são sempre obrigatórios para uma consciência ampla e para um coração profundo”.

                 Sejam muito bem-vindos, caríssimos leitores. Mais uma vez estamos nós aqui, prontos para decolar nessa impávida aeronave chamada literatura. Vamos partir agora mesmo, despedindo-nos, sem delongas, da França com todo o seu glamour, para partir para a distante e colossal Mãe Rússia. Isso mesmo, companheiros e companheiras de viagem. Hoje vamos cruzar os ares para chegarmos, enfim, à imponente nação que está situada nos limites do continente europeu, invadindo Ásia adentro. Podemos, mais uma vez, acessarmos a nossa “playlist” de viagens e tocar a música “Destruição” de Brayan Arantes, parte da trilha sonora do filme “Crime e castigo” de 2002, dirigido por Menahem Golan, pois existem algumas outras versões.

                Aterrissemos, finalmente, na bela São Petersburgo, fundada em 1703, pelo czar Pedro, o grande. Aliás, dizem que sua intenção ao criar a cidade, que chegou a ser capital imperial, era de dar ares de civilização europeia à sua nação. Mas deixemos a história de lado para voltarmos ao nosso itinerário. Aqui vamos encontrar o nosso protagonista: o jovem Raskolnikov. Sinto muito, meu caro leitor, mas os russos raramente possuem nomes mais simples que esse. Ele é um ex-estudante de Direito que, devido a necessidades mais básicas (no caso a sobrevivência da espécie) para não dizer elementares, foi forçado a abandonar seus estudos. Assim sendo, este jovem passa por grandes dificuldades, em um considerável grau de pobreza.

                Angustiado com a própria situação, busca uma forma de realizar algo importante, alguma maneira de superar a miséria em que vive, sem grandes perspectivas. Nosso “herói” – fazendo uma pequena referência aos protagonistas dos romances românticos – (desculpe meu arroubo de ironia) carrega consigo uma pequena teoria que busca colocar à prova; a divisão dos homens em dois tipos: ordinários e extraordinários, sendo estes últimos aqueles a quem a sociedade livra de seus horrendos crimes porque suas ações foram maiores que a ética de um povo, por isso sempre tem em mente uma lista de grandes assassinos perdoados pela História. Dessa forma, ele tentará provar sua superioridade moral.

                Agora o caro leitor deve estar se perguntando: “De que forma ele fará isso?” Ora, meu caro, eu estou aqui para responder a você. Ele irá cometer um crime do qual acredita sair ileso. Raskolnikov vive de aluguel em um quarto pertencente a uma agiota. Nenhum dos meus leitores seria inocente o suficiente para não imaginar que pedir dinheiro emprestado a ela será nada mais que uma questão de tempo. Também não haverá nenhuma dificuldade em imaginar que ele não conseguirá pagar sua dívida com ela. Estamos nos aproximando de nosso conflito principal (lembrando que todo romance necessita – e muito – de um conflito). Nosso personagem começa a nutrir certo ódio pela senhora que ele julga uma péssima influência, além de testemunhar que a mesma maltrata a própria irmã. Cabe aqui lembrar que o agiota sempre foi uma “persona non grata” na literatura. Basta recordar do onzeneiro (por causa da taxa de juros a 11%), personagem icônico do “Auto da barca do inferno”, de autoria do imperdoável crítico Gil Vicente, o qual chega ao juízo final munido de uma mala abarrotada de dinheiro.

                Seguindo tal raciocínio, Raskolnikov entende que dar um fim a ela seria um grande favor a humanidade, como um crime justificável, partindo da famosa máxima de Maquiavel: “os fins justificam os meios”. Ele vende tudo que pode para honrar seus compromissos, porém continua devendo a ela, entrando em profundo desespero. Cada vez mais a morte dela parece ser o único caminho para trazer a solução aos seus problemas. Eis que após planejar meticulosamente tal assassinato, ele enfim o comete, a sangue frio. Contudo, não contava com a presença da irmã da vítima que acaba o surpreendendo e virando uma testemunha. Portanto, ela não pode sobreviver. Aqui o protagonista comete mais um assassinato, desta vez, pelo mais instintivo impulso. Acabamos de chegar à primeira parte do título do livro: crime.

                Após matar as duas irmãs e apropriar-se das inúmeras joias que a agiota tinha em seu poder, o jovem parece finalmente resolver os seus problemas financeiros. Entretanto, passará a ser perseguido por um caçador implacável: a consciência. A morte da irmã (para ele uma vítima da outra) faz cair sobre ele um grande pesar. Agora, caro leitor, chegamos à segunda parte do título: castigo. Nosso personagem acaba tendo febres e delírios, sendo atingido pelo golpe duro do remorso, condição que piora quando descobre que a policia achou um bode expiatório para levar a culpa, ou seja, um inocente irá pagar pelo crime em seu lugar. Nessa hora, desfazem-se todas as suas certezas e teses anteriores. Isto tudo me lembra muito bem do personagem Luís da obra “Angústia” do fantástico Graciliano Ramos, personagem que descobre, após matar um rival, que aquilo que ele considerava como um ato de justiça, na verdade não passou de simples vingança, sendo corroído pelo remorso ao longo do livro. Fico aqui pensando: seria apenas uma feliz coincidência literária ou teria Graciliano Ramos conhecido Dostoievsky?

                Caro leitor, mergulhamos, agora, em nossa realidade, claramente estampada nesse romance, que muito tem a explorar do ser humano. A grande pergunta que ele nos faz é: todo crime merece um castigo? Raskolnikov representa tantos seres humanos, espalhados por esse mundo sem fim, anônimos, sem voz, sem rosto, sem vez que, sucumbidos por um desejo pessoal, criam uma pseudojustiça, caindo na tentação de ser juiz e executor das próprias sentenças, como nos versos da música “Desordem” da banda nacional Titãs: “Não sei se existe mais justiça / Nem quando é pelas próprias mãos”, conduzindo-os ao abismo. Tantos homens e mulheres como os personagens de Dostoievsky e Graciliano acham que podem ser juízes e algozes, ao mesmo tempo, prestando o serviço de defender a sociedade, situação explorada (muito bem – diga-se de passagem) pelo núcleo de heróis urbanos da Marvel, com destaque para o Demolidor, tratando da tênue linha que separa o herói do justiceiro.

                Esse livro explora a relação do individuo com a sociedade que o cerca, como uma complexa teia na qual todos nós estamos enredados. Nosso protagonista só vai perceber isso depois de consumado o seu “ato de justiça” e será engolido pelo binômio causa e consequência, defendido exaustivamente pelos escritores realistas e naturalistas, como já pudemos presenciar em “Madame Bovary”. Raskolnikov chega até a pensar na ideia de que se é possível atingir a salvação por meio do sofrimento, como a questão das punições e até mesmo das penitências religiosas que visam à purificação, o que nos leva a precipícios ainda mais fundos como a estrutura do sistema prisional e a defesa da pena de morte.      

                Ah, caro amigo leitor, este livro me trouxe muitas indagações e, para falar a verdade, quase nenhuma resposta. Até porque, muitas vezes, são as indagações que fazemos que realmente nos norteiam perante nossos rumos. No entanto, deixo como presente de despedida, a frase do filósofo Spinoza, na intenção de que possa nos trazer algum alento ou uma direção: “Diante do drama da vida, não se deve chorar nem se desesperar, muito menos odiar. Necessita-se somente compreender”. Que a compreensão, caro leitor, possa nos conduzir pela grande estrada da vida. Até a próxima.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Editora 34, 2016.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

NÃO DEIXE DE ACREDITAR

Crédito: Dima Valkov (PEXELS)

Mesmo que te seja a vida

Tão difícil caminhar

E a estrada longa demais

Para ao fim poder chegar

Comece com um só passo

Não deixe de acreditar.

 

Quando num mar de problemas

Você teme se afogar

E a tábua de salvação

Impossível de alcançar

Nade com todas as forças

Não deixe de acreditar.

 

Quando a escuridão da noite

Começa a te sufocar

Coração envolto em trevas

Nada podendo enxergar

Espere o raiar do sol

Não deixe de acreditar.

 

Mesmo que o mundo ao redor

Contra você conspirar

Tentar roubar sua paz

E a sua fé machucar

Encontre o seu equilíbrio

Não deixe de acreditar.

 

Caso o vírus da mentira

Queira te contaminar

Dizendo que o importante

É você se aproveitar

Defenda sempre a verdade

Não deixe de acreditar.

 

Se o mundo te menospreza

Para baixo a te jogar

Dizendo que nada pode

Que é inútil se tentar

Mostre a ele a tua força

Não deixe de acreditar.

 

Se a vida parece curta

Pra tanto realizar

E o tempo tal qual ladrão

Seus momentos quer roubar

Aproveita a cada instante

Não deixe de acreditar.

 

Quando a voz da solidão

Pertinho te sussurrar

Que não tem ninguém contigo

Para ao teu lado ficar

Ninguém nunca está sozinho

Não deixe de acreditar.

 

Se o mal parecer eterno

Pronto pra te devorar

Forçando tua desistência

Pois é inútil lutar

Sinta a chama da bondade

Não deixe de acreditar.

 

Se a morte ronda teus passos

Insistindo em explicar

Que a tua hora chegou

Que não há nada a tentar

Cada vida é um milagre

Não deixe de acreditar. 

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

CERIMONIAL

Crédito: Emmanuel (PEXELS)

Faz-se noite agora no fim do mundo

Do cume das montanhas rochosas

Pairam imponentes obeliscos moldados a mãos divinas...

 

Uma legião de horrendos elementais

Cavalga indomáveis e selvagens tornados...

O trote desgovernado dos fogosos corcéis

Precipita-se adiante a conduzir almas

Rumo à escuridão do abismo do esquecimento

 

A profunda garganta negra permanece escancarada

À espera, faminta por novos sacrifícios.

O som característico do desespero

Em breve abafado pelas trevas opressoras.

 

Cada prece reduz-se ao silêncio

E num passo de segundos

A paisagem recupera seu marasmo

Pronta para o próximo holocausto.

terça-feira, 4 de novembro de 2025

O VALE DOS SENTIMENTOS (NOVEMBRO 2025)

Crédito: Arnaldo Júnior

 TEMA

Muitos são os contos antigos que nos chegam, difundidos em diversas versões, que tratam sobre lições de valor. Claro que encontramos uma boa parte deles cuja abordagem assemelha-se ao tom moralizante das fábulas, mas, por outro lado, muitas são as histórias que nos encantam, em especial aquelas que trabalham com as analogias, utilizando-se do mesmo expediente das parábolas: o de transformar toda e qualquer abstração em elementos concretos.  Dentre esses contos, li há muito tempo atrás uma versão (pois existem tantas e tão interessantes) de “O vale dos sentimentos”, de autoria desconhecida, em uma revistinha da Turma da Mônica e fiquei encantado. Tantos anos depois, não resisti à tentação de adaptar para o cordel essa história, que ainda trago nítida na minha lembrança de leitor, criando também a minha versão.

SINOPSE

Em um lugar distante de nossa realidade, existe um maravilhoso vale e, no seio desse vale, há uma pequena e charmosa vila, com casinhas coloridas, cada uma decorada à sua maneira. Apesar de parecer um lugar como qualquer outro, o que faz desse local extraordinário é o fato de que nele vivem reunidos todos os sentimentos em um clima de harmonia mesmo com as diferenças entre eles. No centro do vale, vive o mais importante dos sentimentos. Num belo dia de sol, a raiva, único sentimento a morar sozinha e isolada dos demais, está elaborando mais um de seus planos maléficos ao preparar uma poção muito poderosa e assustadora que se precipita sobre o vale. Não perca essa bela analogia ao comportamento humano, adaptada para o cordel de um conto antigo e de origem desconhecida.

A história que agora conto

É antiga de verdade,

Lá do começo dos tempos

Por volta da antiguidade.

Vem de uma longínqua época

Bem antes da humanidade.

 

Bastante longe daqui.

Muito, mas muito distante,

Em um canto deste mundo,

Sem mais terras adiante,

Existia em segredo

Um lugar interessante.

 

Lá onde o grande oceano

Acaba numa montanha.

Era um gigante maciço

De uma altitude tamanha

Que guardava um belo bosque

No fundo de sua entranha.

 

Um campo de vivo verde

Se estendia como um manto

Por cada palmo de terra,

Encobrindo a todo canto,

Como o mais nobre tecido

Fiado qual por encanto.

 

Logo após um grande vale,

Por todos lados florido.

Ao fundo uma cachoeira,

Um lago bem colorido

Que abrigava no seu centro

Um reino desconhecido.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A IMPOSSIBILIDADE DE FUGA DA REALIDADE

Crédito: Albert Fourie (PICRYL)

 “Parecia-lhe que certos lugares na terra deviam produzir felicidade, como uma planta particular ao solo e que cresce mal em outro lugar”.

                 Sejam bem-vindos, caro leitor e cara leitora. Estamos nós aqui de volta a esse mundo sem fronteiras que é a literatura. Prontos para uma nova aventura? Espero que todos já estejam refeitos de nossa última viagem, cujo desfecho nos deixou recordações tão trágicas. Agora, sem mais delongas, porque, como disse um dia o poeta latino Virgílio: “sed fugit interea, fugit irreparabile tempus” (entretanto foge, foge o irreparável tempo), peço que embarquemos imediatamente, nessa segunda-feira (dia oficial da preguiça), partindo da Alemanha em um voo bem curto até a França, nosso exato destino, também com um pequeno avanço no tempo: para o ano de 1857.

                Permitam-me apresentar Emma, uma jovem criada na tranquilidade do campo e educada em um convento. Seu maior passatempo era a leitura de romances, gênero típico da época. Nas narrativas, Emma mergulhava de cabeça em enredos que a fizessem fugir da sua vida, considerada por ela, entediante e sem atrativos. As aventuras passionais e reviravoltas não tão imprevisíveis faziam com que a jovem esquecesse um pouco o marasmo em que vivia, expediente semelhante que os leitores poderão encontrar na obra “O primo Basílio” de Eça de Queiroz.

                Surge, então, Charles Bovary, um médico interiorano, que acaba por se encantar pela moça. Ela vê no rapaz uma oportunidade de escapar daquela sua vidinha. Casamento marcado, esperanças conservadas e, por que não dizer, o nascimento de altas expectativas quanto ao futuro.  Emma traz para o novo lar uma bagagem repleta de sonhos: de uma vida de romance ardente; da paixão como uma chama inextinguível; meras recriações dos tantos romances que lera escondida.

                Acontece que Charles não era um homem ambicioso, tampouco tinha consigo uma paixão ou algum sonho pelo qual valia a pena lutar. Assim, podemos dizer que ele levava uma vida sem a maior das pretensões ou perspectivas de futuro. Não estava na profissão que desejava, por isso a dificuldade para terminar o curso e ser admitido como médico. Com certeza, o caro leitor já deve imaginar que tal união tenha tudo para fracassar... e que essa velha história de que os opostos se atraem é tudo conversa fiada, não é? Você não é o único a pensar assim, meu caro. Não são necessários muitos dias para que Emma perceba que aquela vida de casada que ela almeja, na verdade, não existe, ao menos no seu caso específico, como se observa naquela música do Chico Buarque: “Agora era fatal que o faz-de-conta terminasse assim / Pra lá deste quintal era uma noite que não tem mais fim...”

                Entediada e tomada pela mesmice (ela tem uma empregada para fazer as tarefas domésticas), Emma busca alguma forma para preencher seu tempo e sua monotonia com algo que realmente valha a pena. E aí, caro leitor, acho muito oportuno um ditado das antigas que diz “Cabeça vazia, oficina do diabo”. Emma resolve tentar viver aquelas aventuras que ilustravam as narrativas românticas, aquelas pelas quais tanto ansiava em sua vida a dois. Neste momento, entra em cena um tema antes nunca citado nos romances: o adultério. Ela passa a encontrar-se com outros homens, construindo uma vida paralela. Além disso, contrata um estilista para adquirir novas roupas, para assim poder sentir-se melhor. Resolução essa que vai gerar uma dívida exorbitante.

                Dentre seus amantes, um se destaca: Rodolphe, um rico proprietário da região, um verdadeiro estereótipo do conquistador barato, aquele com suas frases prontas e os gestos cafonas que transmitem a impressão de um verdadeiro cavalheiro, lembrando-me imediatamente do personagem Basílio, do livro já citado anteriormente. Cá entre nós, meu caro leitor, eles parecem a mesma personagem (podendo ser pura coincidência – ou não), com pouquíssimas diferenças. Emma parece enfim saciar sua fome de amar e ser amada, como naquela música do Roberto Carlos: “Nos lençóis macios / Amantes se dão / Travesseiros soltos / Roupas pelo chão / Braços que se abraçam / Bocas que murmuram...” A vida parece ter tomado um rumo certo, pelo menos para ela. Sabe aquela sensação de ter a vida que se pediu a Deus e de que nada poderá dar errado?      

                Mas cabe a mim a ingrata tarefa de trazer o leitor de volta a terra e pôr os pés no chão, pois é assim que se procede em um romance realista, do qual Madame Bovary é o primeiro exemplar, o precursor, o primeiro de muitos que virão a seguir e que encontrarão grandes autores pelo mundo, como o nosso insuperável Machado de Assis. Nestes enredos só há uma lei a se seguir: a de causa e consequência e, dentro desta lei, gosto de lembrar uma das Leis de Murphy: “Se uma coisa pode dar errado, ela vai dar errado”. Ah! Pobre Emma, embora tenha nascido tantos anos antes dessa máxima, poderia ter dado ouvidos à voz da prudência. Porém, cega pelo seu ultrarromantismo (eu já te avisei diversas vezes antes, caro leitor, que o Romantismo é um perigo) acaba acreditando que poderá fugir do seu medíocre médico interiorano, aquele homem sem interesses que valeriam a pena, sem desejos ou luxos, que atendia moribundos o dia todo e que só chegava ao lar ao fim do dia sem uma história interessante pra contar.

                Ela propõe ao seu amante fugirem para sempre, para um lugar distante, onde sua vida será um eterno romance, digno das páginas de um talentoso Alexandre Dumas ou de um Walter Scott, afirmando que eles podem ser felizes para sempre como nos contos de fada. Contudo ela não sabe que, para Rodolphe, ela é apenas mais uma. Ele é um homem solteiro, um aventureiro, sem compromisso algum com alguém. Ela é uma bela distração, mas não vai colocá-lo para cantar só para ela em uma gaiola de ouro. Ele espera pela oportunidade perfeita para descartá-la, como já fez com tantas outras. Ao se dar conta de que seu castelo de areia desmoronou-se de vez: agora sem honra e endividada, Emma entra em pânico. De volta ao mundo real, ela sabe que para certas coisas nessa vida não há volta.

                O romance realista vem a ser uma reação ao mundo criado pelos românticos e seus finais felizes. Ele vem apontar o casamento burguês como uma grande ilusão, um show de aparências. Seus escritores colocam o enlace perfeito em xeque. Pela primeira vez na literatura, trata-se do cotidiano do matrimônio e de seu fracasso. Por que nunca se tinha falado de adultério? Já discutimos no nosso livro anterior que os homens acham que o fato de não se discutir um problema é uma forma de resolvê-lo, que fingir que ele não existe seja uma ótima estratégia. Também porque muitos chegavam a ver o adultério como uma alternativa para provar um pouco daquela paixão que não se tinha no casamento. Cada ideia que se tem...

                Mencionando a frase citada no início do artigo, Emma procura pela felicidade como um tesouro escondido numa ilha, aquele lugar especial que está distante da nossa visão, para o qual existe uma palavra mágica que faça abrir a porta. Ela nunca pensa na possibilidade de construir o seu sonho de futuro, que ser feliz não é um bilhete de loteria, um prêmio aleatório, mas que é fruto de todo um esforço, acompanhado do resultado das escolhas que fazemos. Por que não fazer da felicidade o aqui e agora, transformando o real, em vez de esperar sempre pelo depois e pelo lá distante. Isso tudo me faz lembrar o final do fantástico soneto do parnasiano Vicente de Carvalho, sobre a felicidade: “Essa felicidade que supomos / Árvore milagrosa que sonhamos / Toda arreada de dourados pomos / Existe, sim: mas nós não a alcançamos / Porque está sempre apenas onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos”. Caro leitor, que cada um de nós possa encarar a realidade e dela construir nossa real felicidade. Até a próxima.

 FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Martin Claret, 2015.    

 

PRESENTE

Crédito: Cottonbro Studio (PEXELS)   Corre, meu jovem, não demora! A eternidade é ouro de tolo O tempo foge ao mais suave toque dos seu...